150 anos do clássico ‘Guarani’

24/11/2020 16:36

O maestro Abel Rocha vem dando seguidas lições de como conduzir uma orquestra – ele é titular da Orquestra Sinfônica de Santo André (Ossa) – durante uma pandemia que nos imobilizou a todos e simplesmente interrompeu a vida musical convencional desde março passado. Depois de dois projetos certeiros para os tempos atuais – Microestreias da Quarentena, no primeiro semestre deste ano, e Trilogia Trancafiada, em agosto -, ele fecha virtuosamente 2020 com Guarani, comemorando os 150 anos da estreia da ópera de Carlos Gomes no Teatro alla Scala de Milão.

Em 7 minutos e 37 segundos, montou-se uma micro-ópera em torno dela. Um locutor narra a história baseada no romance de José de Alencar. Curtos trechos de árias e duetos famosos localizam os momentos-chave da ópera, com a participação da soprano Rosana Lamosa, do tenor Paulo Mandarino, do barítono Leonardo Neiva e dos baixos Saulo Javan e Anderson Barbosa.

A ideia tem um viés didático, mas não se esgota no objetivo pedagógico. Os que não a conhecem vão ficar curiosos em assisti-la na íntegra. E os que a conhecem vão se encantar com o modo como a direção musical de Abel Rocha e a concepção visual de Luísa Almeida constroem uma narrativa divertida e deliciosa.

Os três projetos já estão disponíveis no YouTube. Ou seja, no palco que hoje de fato acolhe a vida musical e artística brasileira enquanto perdurar esta situação. Não adianta replicar situações de concerto com pouquíssimo ou nenhum público. Aliás, não só a vida musical brasileira, mas do planeta.

Beethoven

Nem bem me refiz do impacto positivo com este Guarani e descobri outra sacada genial, desta vez a propósito dos 250 anos de nascimento de Ludwig van Beethoven (1770-1828). A efeméride está sendo comemorada há mais de um ano, mas agora chegamos à reta final: estamos a menos de trinta dias da data do aniversário, 17 de dezembro.

E um coletivo belga, Walpurgis, tornou realidade, numa animação de 15 minutos, uma utopia imaginada pelo filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977). Explico: em seu monumental livro O Princípio Esperança, Bloch faz da música a única arte capaz de antecipar e nos fazer vislumbrar o que será o “mundo desalienado”, ou seja, um mundo mais justo, igualitário. E, para ilustrar sua tese, dedica grande parte do terceiro volume de O Princípio Esperança à música. Duas delas são de obras-chave de Beethoven: sua única ópera Fidelio e a Nona Sinfonia. Bloch anota que ambas compartilham a palavra “alegria”: na sinfonia, imediatamente antes da Ode à Alegria, Beethoven convoca os homens a entoar “um canto pleno de alegria”; e na ópera, quando Leonora, ao final, consegue libertar Florestan da prisão, ambos cantam Ó alegria indizível.

Não sei se Judith Vindevogel, Roman Klochkov e Anna Heuninck – responsáveis pelo conceito, roteiro, direção e animação de Fidelio – andaram lendo Bloch, mas que parece, isso parece. O grupo de nove músicos do grupo Oxalis, do saudoso Reinbert De Leew, há poucos meses falecido e campeão deste tipo de projetos inovadores, toca um arranjo refinado e sutil de Jago Moons, que entremeia trechos da ópera com a Ode à Alegria. O resultado é de arrepiar.

A qualidade da animação à la flower power anos 60 (como me lembrou Nelson Kunze) e o roteiro chamam a atenção para a primeira ópera feminista da História, em que a esposa veste-se de homem para salvar o marido injustamente preso. Provam que é possível não só reinventar uma ópera de quase 3 horas em 15 minutos, mas também fazê-la virtuosamente contracenar com oura obra-prima de Beethoven. Afinal, ambas à sua maneira, lutam pelos mesmos ideais: a justiça, liberdade e congraçamento entre os homens. Falam de um futuro humanizado. A alegria de Leonora-Florestan e a alegria do coral da Ode da Nona comungam e prefiguram, antecipam uma existência, uma promessa e também uma conquista: “Todos os homens tornam-se irmãos”.

É curioso – e pode ser simbólico – que Bloch tenha escrito seu Princípio Esperança quando estava exilado nos Estados Unidos, entre 1938 e 1945, naquela situação-limite vivida pelo planeta na Segunda Guerra Mundial. Igualmente simbólico é estes músicos, cantores e artistas de animação belgas unirem estas duas pontas – ou bem-vindas utopias, quem sabe? – oitenta anos depois, quando vivemos de novo uma situação-limite no planeta inteiro, acuados pela pandemia.

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