A antropomorfização das máquinas
“O Meu Pé de Laranja Lima” foi um dos primeiros filmes a que assisti em Teresina. Isso na década de 70. Depois, o livro infanto-juvenil de José Mauro de Vasconcelos foi adaptado para uma telenovela, produzida e exibida pela saudosa TV Tupi. Em síntese, essa obra, traduzida em diversas línguas, rodou o mundo. Foi publicada em vários países. Ganhou adaptações para o cinema, televisão e teatro.
Vi o filme antes de ler o livro. Por isso que o diálogo do menino Zezé com o pé de laranja lima ficou na minha memória afetiva. Pela primeira vez, vi, no cinema, um diálogo entre uma pessoa e uma árvore antropomorfizada, ou seja, que manifestava características humanas. Esse diálogo com a árvore materializava o questionamento de uma criança diante da realidade do mundo dos adultos que, para ela, apresentava-se de forma incompreensível. Não são raros os momentos em que uma criança, brincando sozinha, dialoga com os brinquedos, até cria amigos imaginários.
No período mencionado da minha infância, havia, no quintal da casa em que morava, uma goiabeira. Um dia, após uma chuva, tentei subir para pegar algumas goiabas. Não fui bem-sucedido: caí, quebrei o braço. Fiquei um bom tempo com ele engessado. Para que não acontecesse o mesmo com algum dos meus irmãos, o meu pai a cortou.
O braço engessado não me trouxe grandes problemas. Assimilei bem. Porém, tive dificuldade de aceitar a minha imprudência de subir no pé de goiaba depois da chuva, pois os galhos ficam escorregadios. E, por causa minha queda, a goiabeira foi cortada. Assim, de forma dolorida, comecei a pensar na relação de causa e consequência…
Temos uma memória que guarda lembranças que saltam em função das nossas reações emotivas, não a vejo como um frio banco de dados que é acessado em função das nossas vontades. Às vezes, queremos lembrar um simples nome, mas não conseguimos. E, em uma hora descontraída, ele vem voluntariamente.
Cada ser humano carrega uma história única. Mesmo os membros de uma família, que vivem debaixo do mesmo teto, não têm o mesmo destino. Cada um segue o seu caminho, independente do desejo dos patriarcas e matriarcas.
A unicidade de cada criatura humana não está relacionada somente aos aspectos biológicos, a nossa personalidade fica exposta em nossas atitudes. O conjunto de fatores que se encontram na raiz da nossa maneira de ser são alicerçados ao longo do tempo, por isso, são passivos de mudanças. Vive-se aprendendo. E aprende-se a viver. Essa é uma das singularidades que nos difere das máquinas. Não somos movidos somente por uma inteligência. Há também sentimentos, fé, crenças, afetividades, aspirações de felicidade, contemplação do belo. Essa complexidade abstrata é que inviabiliza a antropomorfização das máquinas. A beleza de uma flor, um fascinante pôr do sol, um gesto de carinho podem nos propiciar sensações de bem-estar…
Em síntese, o que mais nos difere das máquinas não é o que produzimos, mas o que sentimos. A imprudência de uma criança em busca do que deseja jamais será gerada pelo comando de uma tecla. O amor, o ódio, o egoísmo, o suor, o carinho, as lágrimas são alguns dos nossos diferenciais. Talvez seja mais fácil mecanizar os homens do que humanizar as máquinas. O livre arbítrio não é fruto de uma programação. A sensação de liberdade não é regida pelas noções de probabilidade.
A literacia digital jamais alcançará a Poesia de um Fernando Pessoa. Não há como traduzir a alma humana sem ter um coração no peito. “A beleza salvará o mundo” já afirmara Dostoievski.
A busca da perfeição gera uma inquietação que rompe com os padrões impostos por quem deseja ter o controle de uma sociedade para que ela seja regida somente pelo consumo, sem usar o senso crítico.
É preciso ver a tão questionada Inteligência Artificial (IA) como uma criação humana, portanto, também limitada, passiva de erros. A nocividade dessa ferramenta não está nela, mas, em quem a usa. Por isso a sua utilização deve ser gerida por uma consciência ética, responsável em benefício da humanidade.
Neste ambiente minado de “pós-verdade”, os fatos objetivos são suplantados por narrativas emocionais que tendem a manipular a opinião pública para que os boatos prevaleçam; não a verdade. Por isso, não só os governantes, mas também a sociedade, as empresas que trabalham com a Tecnologia da Informação (TI) precisam exercer uma constante vigilância (fact-checking). Não replicar fake news já ajuda.