A autoestima chinesa, a nossa e o tempo

24/10/2020 00:01

Lendo jornais, assistindo noticiários de TV, acompanhando as redes sociais, somos tomados pela desagradável sensação de que, em matéria de autoestima nacional, descemos ao nível do tornozelo, talvez à sola do pé, mais adequada se insistirmos em pisoteá-la. Analistas de peso transmitem a perplexidade de que estão tomados, tendo mesmo certa dificuldade em se situarem diante dos fatos, aqui inclusa a burrice (de decisões) na linha do que Roberto Campos definiu como tendo no Brasil um passado ilustre e um futuro promissor. Acertou. Ele só se esqueceu de adjetivar a burrice com a palavra republicana. Nessas horas, um pouco de História nos ajuda a ver em perspectiva o que se passa com o Brasil e o estado do Rio de Janeiro, restaurando nosso espírito de luta.

Para tanto, vale a pena irmos para o outro lado do planeta, para a China. Ninguém ignora que se trata de uma civilização de seis mil anos, orgulhosa de sua história e conquistas. De fato, no século XV, os navios chineses, imensos comparados às naus portuguesas, se lançaram a mares distantes, explorando a costa oriental do continente africano. Tratava-se de uma civilização sofisticada que inventou não só a pólvora e a bússola, dentre inúmeras outras que o engenho humano é capaz de materializar. De repente, não mais que de repente, um dos seus mais de 500 imperadores decidiu interromper as aventuras marítimas em andamento. Aos poucos a China foi se defasando em relação ao Ocidente em matéria de conquistas científicas práticas, inclusive armas de guerra de alto poder de destruição.

E foi assim que o imperialismo europeu estendeu seus tentáculos mundo afora. A Inglaterra conseguiu o prodígio de construir um império onde o sol nunca se punha (ou da noite perpétua, diria um antibritânico sarcástico) de 33 milhões de km2, conseguindo dominar povos e etnias de diferentes cores. A própria Rússia dos czares, em seu auge, não ia além dos 22 milhões de km2. Nesse período histórico, a China, acabou se tornando presa das potências europeias. Pela manhã, suas embaixadas, próximas umas às outras, içavam suas bandeiras ao som de seus hinos nacionais numa barulheira infernal. No famoso filme “55 Dias em Pequim” tem uma cena em que um velhinho chinês pergunta a outro, que alvoroço era aquele. Rápido no gatilho, foi direto no fígado: “São 10 países dizendo ao mesmo tempo: ‘Nós queremos a China!’”.

Não é preciso dizer que a autoestima chinesa bateu na sola do pé em meados do século XIX. Naquela época, um sexto da receita do tesouro inglês era proveniente do comércio do ópio. As casas do vício espalhadas pelo país mantinham suas portas abertas a quem quisesse se drogar num processo de desfibramento físico e moral da população chinesa. Era tão lucrativo que a Inglaterra se meteu, e venceu, as duas guerras do ópio. Quem vivia na China daqueles tempos os confundiu com os fins dos tempos para o país. O grau de humilhação a que foram submetidos seus habitantes foi inimaginável. Basta relembrar a mágoa profunda ainda cultivada pelas atuais lideranças chinesas.

O Brasil, ao longo de sua história, nunca foi submetido a situações tão degradantes como a de nação ocupada militarmente por forças estrangeiras. Quando o foi, ainda no período colonial, soube reagir à altura, ao ser invadido pelos holandeses. A construção da autoestima nacional se inicia nesse período em que portugueses, negros e índios lutaram lado a lado, em grande desvantagem numérica, de até três contra um, e se saíram vitoriosos. Essa disparidade nos autoriza falar da resistência heroica desses nossos irmãos de antanho. As tropas indígenas e negras foram comandadas, respectivamente, pelo índio Felipe Camarão e pelo negro Henrique Dias, ambos alfabetizados, sendo oficiais com o devido treinamento militar. Posteriormente foram recebidos pelo rei D. João IV, que os titulou e tornou permanente o regimento negro de Henrique Dias a pedido deste. Essa tradição foi mantida na Guerra do Paraguai. Já os soldados negros americanos na Segunda Guerra Mundial, séculos depois, ainda eram comandados exclusivamente por oficiais brancos!

Essa questão da baixa autoestima nacional dos dias atuais não nos acompanha desde sempre. Ainda me recordo de uma palestra do saudoso Prof. Carlos Lessa, em Natal-RN, em que ele informava à plateia que o brasileiro não teve um problema de se sentir inferiorizado no século XIX tamanho era o prestígio nacional e internacional do Estado imperial brasileiro. Pedro II, em carta ao Conde de Affonso Celso sobre a modéstia, uma qualidade preciosa nos indivíduos, afirmava ser ela inadmissível nas nações. Dizia ele textualmente: “Com esse orgulho, superam as nacionalidades crises mortais. Aviltam-se sem ele. É meio caminho para a grandeza; uma das asas do progresso e da glória”.

Estas palavras de Dom Pedro II ainda nos tocam hoje bem como nos dão uma pista para os desacertos em que nos metemos nesses tempos republicanos. O povo brasileiro, via redes sociais, começou a se dar conta de que lhe passaram o conto do vigário. O jornalista Demétrio Magnoli, na Globo News, reconhece a profunda desconfiança popular em relação às elites brasileiras. Ele poderia ter ido mais fundo explicando que é compreensível este estado d’alma face a um regime, implantado há 130 anos, cujas “realizações” mais se assemelham a um prontuário policial: corrupção sistêmica, desigualdade brutal e um sistema político que não representa a população.

A boa notícia é que o tempo é mensageiro da reversão positiva das expectativas. Quem contempla a China de hoje, vitoriosa, hiperprodutiva e com amplo domínio das tecnologias de ponta, provavelmente desconhece o lado negro de sua história que se passou em meados do século XIX. No nosso caso, a população, a despeito de desvios de rota por falta de informações fidedignas sobre nossa própria História, está cada vez mais ciente de que ela não está no controle de seu próprio destino. Virou um povo a serviço de uma burocracia. Mas ela se cansou de ser aviltada. Quer voltar a ter aquele orgulho de que nos falou Pedro II. Cabe a nós seguir o sábio conselho dele.

 

 

 

Autor: 

Empresário e economista . E-mails: gastaoreis@smart30.com.br// ou gastaoreis2@gmail.com

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