A Brasileira: digna de se tirar o chapéu
Escondidos pela aba da saudade e, forrados pelo conforto do atendimento, são absortos em andanças por lembranças os sorrisos de quem da loja tomou conhecimento. Ambiente digno de se tirar o chapéu, foi a Brasileira endereço oficial do adereço e do apreço tido pelo casal de comerciantes.
Ainda que feitos para cobrir, sob a gestão de Ruben e Estera Levis, os chapéus mais se assemelharam a véus que fizeram transparecer o principal elo de comunicação entre os dois: o coração. Especializada na venda do acessório, a loja de vestuário masculino ganhou seguidores e admiradores, a começar pelos familiares.
Até porque foi em família que o negócio nasceu e cresceu. E por mais que não de sangue, após 35 anos como balconista do estabelecimento, não havia como negar: o aposentado Celso de Souza Nunes já havia se tornado filho de alma do senhor Ruben e patrimônio imaterial da Brasileira.
Com ao menos 16 anos à época em que ingressou na loja, por lá ficou pelas décadas seguintes. Tanto que serviu ao exército, retornou e junto aos patrões se aposentou. Com exceção de calçados, conta Celso que vendiam-se desde camisas e calças sociais a cuecas, cintos, meias e lenços, “chapéus de lebre, de lã, boinas e bonés”.
“Época marcada por pessoas fora de série” o que a torna “impossível de se esquecer” para Celso, a referida rotina também figura entre as recordações da antiga Petrópolis vivida por Darcy de Azevedo, de 81 anos. Por cerca de três anos, diz ele que, mensalmente, era quem dispunha as vitrines da Brasileira, inclusive a dos chapéus.
“Ela era pequena e central, separada das demais. Seu Ruben era um pouquinho exigente. Às vezes, eu colocava numa posição e ele queria outra”. Sem arranjos, mas igualmente atraentes, as vitrines em nada deixavam a desejar. Muito pelo contrário, para o empresário Alexandre Werneck, de 58 anos, de lamento só o fechamento do estabelecimento.
Do cinza ao marrom; do feltro à palha. Variadas, as mercadorias eram de encher os olhos e, ao mesmo tempo, esvaziar os bolsos de Alexandre. Brinca ele que, nascido numa família de carecas, ainda adolescente passou a estudar as opções que tinha em mãos, sendo a melhor delas aderir ao estilo garantido pelos chapéus.
“Fiquei preocupado em ficar careca logo, daí criei o costume de usar chapéu. Quando a loja fechou, só fui encontrar chapéus em São Paulo, mas nunca mais iguais aos vendidos na Brasileira”. Inigualáveis, os itens vendidos faziam, junto ao atendimento, dupla mais que satisfatória na antiga Avenida XV de Novembro.
Atual fachada da antiga A Brasileira. Foto: Bruno Avellar
Facilidade em comprar e se relacionar
Fosse em busca de acessórios de proteção ao frio ou de enfeite, a loja rendia aos clientes momentos de deleite. Provocados pelo contentamento em presentear a si mesmo ou aos outros com mercadorias de lá, dificilmente o cliente escondia, sob as abas do chapéu, a satisfação com o tratamento e a acolhida.
Talvez por isso, a aposentada Neuza da Fonseca Bettencourt, de 71 anos, já soubesse qual rota traçar sempre que precisava comprar roupas e acessórios para o pai, os primos ou o namorado. Filha de comerciante e dada sua experiência na mercearia do pai, sabia diferenciar de longe a venda interessada daquela engessada.
“Um dia me deparei com a Brasileira e virei freguesa. Era meu ponto de referência em aniversários, no Natal. Comprava de tudo: camisas, roupão pós-banho, cintos, lenços”. Por lá, de fato, de cintos só os artigos de moda, porque, em hipótese alguma, o freguês ouviria um ‘sinto muito, não posso lhe atender’ de seu Ruben ou da senhora Estera.
Descreve uma das filhas do casal, a secretária-executiva Ita Dekermacher, de 68 anos, irmã de Ana Lucia e Jaques, que por mais de 50 anos, mais do que o ganha pão da família, o empreendimento representou um segundo lar para todos eles que, principalmente em épocas festivas, faziam mutirões para dar conta do atendimento.
A família, com origens na Polônia e também na Romênia, então se reunia e se dividia. Alguns vinham do Rio e, enquanto um assumia o caixa, o outro atendia, embrulhava e assim por diante. Tamanho era o envolvimento com a loja que, em 1999, quando soube de seu fim, Ita se sentiu na obrigação de eternizar, num livreto, suas vivências na loja.
“A notícia veio com muito pesar. Até porque o negócio teve início com o meu avô Uszer Gewandsznajder, que o pessoal chamava de Oscar, com a Alfaiataria do Povo, bem ao lado. Quando meu pai se mudou para cá ele montou A Brasileira. Até que, mais tarde, eles fizeram uma fusão. Daí ficou sendo só a segunda, com eles como sócios”.
Judeus, os pais e filhos criaram raízes no comércio e fora dele, como foi o caso da Sinagoga Israelita que frequentavam. Ponto importante na formação de Ita, como ela mesma descreve, era ponto de encontro não só religioso, mas social e cultural cujos frutos da interação continuam a ser colhidos.
Membro da diretoria da sinagoga, Armando Bronstein, de 59 anos, recorda o convívio com os Levis: as idas à loja, as caronas para as cerimônias de oração e, principalmente, o elo entre o senhor Rubens e a senhora Estera. “Eram fáceis de fazer amizade e de conversar; um casal unido, que saía de casa de manhã e voltava à noite juntos. Era bonito de se ver”.
Tomada pelas lembranças e, não mais escondida pela aba, a cidade, endereço oficial da família, então tira com gosto o chapéu para, num sorriso, agradecer e enaltecer o casal de comerciantes.
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