A colonização portuguesa e o futuro

25/12/2021 08:34
Por Gastão Reis

Imagine uma família que criasse um filho falando cobras e lagartos de seus avós e bisavós. É evidente o que ocorrerá com a autoestima dessa criança. Afinal, ela não pode ser responsabilizada pelos malfeitos, ou mesmo crimes, de seus antepassados. Mas algo parecido vem ocorrendo com o Brasil em relação a seu passado. Esse apagão da memória nacional pode ser ilustrado pelo fato, por exemplo, de nossas notas não trazerem mais os retratos dos grandes vultos de nossa História. Em geral, os demais países os preservam em suas cédulas. Pior: informações mentirosas, sem base factual, promovem, injustamente, uma desconstrução de nossas grandes personalidades. Não obstante, sabemos que a autoestima de um povo é sua alma. Árvore sem raízes morre.

O que as novas pesquisas, fundamentadas em dados e informações fidedignas, nos dizem sobre nosso passado de colonização luso-afro-indígena?

Tomemos o Brasil Colônia, sempre visto sob uma ótica unidimensional em que a cobiça lusitana assume o primeiro plano. Visões como a do marxista Caio Prado Jr. e a de Oliveira Vianna, de perfil conservador, se irmanam em ver nos tempos coloniais uma simples economia de base exportadora a serviço de interesses da metrópole. Não levaram em conta que 85% do que era aqui produzido foram consumidos internamente, sendo apenas 15% exportados. Na verdade, era uma economia bastante dinâmica a ponto de a renda per capita nossa por volta de 1800 ser equivalente à dos EUA na mesma época. E já ostentarmos uma economia que se equiparava à portuguesa de então.

A pesquisadora americana Rae Jean Dell Flory, por sua vez, estudou o período colonial intermediário, de 1680 a 1725, com base em arquivos de igrejas e testamentos em cartórios em que ela vai fundo nas relações vigentes entre pequenos e grandes proprietários agrícolas, abrangendo as relações desses últimos com comerciantes e artesãos. O quadro que emerge de suas pesquisas, antes ignorado por falta de técnicas e levantamentos capazes de extrair conteúdos relevantes para o entendimento do que se passou no Brasil Colônia, não confirma as análises, sem base quantitativa, de Oliveira Vianna e de Caio Prado Jr. Para estes, os grandes proprietários tinham poder absoluto. Eles não levaram em conta o frágil controle da metrópole sobre o imenso território colonial e a autonomia efetiva das forças de mercado e desbravamento pelos colonos livres de novas fronteiras agrícolas.

Outra visão depreciativa de nosso período colonial, muito citada por historiadores e colunistas conhecidos, é o famoso chavão de Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (1630): “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem vela nem trata do bem comum, senão cada um do seu particular.” Adam Smith, por sua vez, afirmava sem pejo que não devíamos o nosso pão de cada dia à preocupação do padeiro com nossa fome, mas com seu interesse pessoal em ter lucro. Dizia mais: procedendo dessa maneira, “frequentemente, promove o (interesse) da sociedade mais efetivamente do que quando ele pretende se importar diretamente com ela”. Em sua visão, onde cada um realiza suas tarefas corretamente, o todo se beneficia. (Vide Teoria dos Sentimentos Morais).Não ser repúblico na Inglaterra era abençoado pelo pai da economia; no Brasil, virou ignomínia.

No período do Brasil Império, a crítica ao baixo desempenho econômico também não se sustenta. Uma delas chega ao absurdo de afirmar que a renda real per capita de 1820 a 1900 cresceu apenas 5%. Pesquisa recente, de 2013, de Tombolo, A. G & Sampaio, A. V., O PIB brasileiro nos séculos XIX e XX, nos informa que de 1820 a 1875, o PIB per capita cresceu 1,21% a.a., ou seja, praticamente dobrou no período. Causa estranheza tamanha discrepância em relação aos 5% citados, levando em conta ainda que, no acumulado da última década do Império, houve um aumento do PIB per capita de 17% e do PIB em 42%, segundo a mesma pesquisa cujos fundamentos são tecnicamente sólidos.

A conclusão óbvia é que, no plano da economia, o desempenho dos períodos colonial e imperial foi bem melhor do que a “sabedoria” convencional nos diz.

Mas como teria sido o desempenho no plano político-institucional? A moderna teoria econômica ressalta o papel da qualidade das instituições (as regras do jogo, para Douglas North) de um país como principal fator explicativo de seu sucesso, ou insucesso, em sua trajetória de crescimento sustentável.

Na verdade, o fundamental nesse processo é o grau de controle efetivo que a sociedade tem sobre os que dispõem de poder político. O presidencialismo latino-americano, em que estamos inseridos, é marcado pela ausência tanto do voto distrital puro como do instituto da revogação de mandatos (recall). Ou seja, a sociedade é alvo de sistemática manipulação que dá origem à desilusão da população com a política e os políticos por desconhecer a existência destes mecanismos efetivos de controle.

O fato de não termos uma Chefia de Estado separada da de Governo, desde 1889, nos levou a fazer parte do drama latino-americano em que o presidente absorve estas duas funções, inexistindo uma força atuante nos momentos de crise entre os poderes, que não são independentes e harmônicos. Constar da constituição não os impede de serem rechaçados pela realidade.

Portugal, ainda hoje, mantém seu regime parlamentarista. Sua espinha dorsal tem características semelhantes às que nos foram legadas até o fim do Segundo Reinado. O poder moderador, certamente com poderes menos amplos do que tinha no nosso século XIX, é exercido por um presidente eleito, um quarto poder, que não temos mais, para atuar em conflitos entre os demais.

Foi justamente nosso afastamento das boas práticas político-institucionais que nos conduziram à geleia política em que nos metemos. Colocar a culpa na colonização portuguesa é terceirizar a responsabilidade por nossas mazelas políticas cuja autoria foi produto nosso a partir de 1889. Retomar o caminho das pedras, que já conhecíamos, aponta para o futuro que almejamos.

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