A complexidade do simples
Desensoberbecer é uma tarefa árdua, uma vez que exige desenvaidecimento. Por isso que a simplicidade plena é complexa, requer o despojamento regido pela humildade que renega ostentações. Franciscanizar-se é um grande desafio, principalmente em um contexto social que estimula a competição na exaltação dos fortes e dos que acham que “o sucesso valida o ato” (exitus acta probat). Em síntese, tornar-se simples não é tão simples, exige a ruptura com a futilidade, com a ganância, com o orgulho, com a soberba, com o narcisismo, com o egoísmo, com a arrogância que humilha os menos favorecidos.
Temos de reconhecer que não é fácil: levar o amor, onde existe o ódio; onde há ofensa, expor a opção do perdão; onde há discórdia; propor a união; onde há dúvida, dar testemunho da fé; onde existe erro, revelar a Verdade; onde há desespero, falar do esperançar; onde há tristeza, levar a alegria; onde há trevas, ser a luz…
Cada vez que ouço a “Oração de São de Francisco”, aumenta a minha resistência para pedir a Deus “um pouco de malandragem”. Não perco a oportunidade de aprender a amar. Não canso de ler os poetas e continuo com a proposta de seguir “o Caminho, a Verdade e a Vida”. Nessa vertente, a simplicidade é imprescindível. Esse desafio aumenta quando se tem, como referência, o bem comum. Quando encontro alguém que vivencia, em silêncio, a simplicidade franciscana no ato de servir, vejo o quanto ainda tenho que aprender.
A nossa incompletude tem sede de eternidade. Mesmo ciente de tal fato, renunciar a si para priorizar o outro, exige um esforço hercúleo. A realidade expõe que não é tão simples ser simples: procurar consolar mais do que ser consolado, compreender mais do que ser compreendido, amar mais do que ser amado…
O desnarcisamento é imprescindível para que se tenha a oportunidade de enxergar a beleza do outro. E assim, “amar o próximo como a si mesmo”. E esse amor tem que ser sem fronteiras.
Para que a gentileza gere gentileza, é necessário servir sem ser vil, perdoar sem guardar ressentimentos, ser sol para luas, irmão para quem está nas ruas, luz para o mundo, sal da terra, fermento nas massas…
São inconcebíveis as explicações, as justificativas das más ações respaldadas nas boas intenções. O Bem não se alimenta de falcatruas.
A reflexão, aqui exposta, teve início na manhã de domingo de 17/11/2024. Vi, no leito final, uma senhora que optou por uma vida franciscana. Mesmo diante das últimas dores, sorria, mantinha um semblante sereno na espera do fim. Havia uma aceitação tranquila das limitações impostas pela idade. Viveu 81 anos. 61 dedicados ao amparo, à vivência religiosa. Lúcida, dialogava com os visitantes. As palavras surgiam, após uma respiração profunda para apascentar as dores:
– Que bom que vocês vieram!… Sempre pergunto por vocês!… Não deixem de vir aqui…
Mesmo nos últimos momentos de vida, externava a cordialidade, a gentileza. Sentir-se cativado por alguém que abandona as próprias dores para acolher o próximo desperta uma gratidão imensurável.
A partida dessa senhora se deu na segunda-feira (25/11). Jamais esquecerei essa data, pois coincide com o dia do nascimento do meu pai. Se estivesse vivo, completaria 95 anos.
No início da manhã de terça-feira (26/11), houve o sepultamento dela. Um momento que também ficará em minha memória: quando aplaudíamos uma vida doada ao Criador, bem-te-vis cantavam simultaneamente sem ordenação de maestro; andorinhas, silenciosas, passavam em voos rasantes sobre o cemitério. Um canarinho em um poste próximo trincava solitariamente. Até um canto estridente de saracura foi ouvido. As pétalas lançadas sobre o chão simbolizavam também a efemeridade da natureza humana.
Não se deve perder a oportunidade para assimilar lições de vida. A irmã Luísa de Marilac levou-me a entender que, da fé, emerge o amparo, a força para suportar o fim da dor e a resignação para aceitar a dor do fim. Há um além que eterniza quem edifica, com a própria vida, o bem servir como razão da existência humana.
A vida desprendida do vil metal fica mais leve. E assim, torna-se mais fácil assimilar a morte. Deus não faz, nem fez nada descartável. Acredito no Eterno É, sem princípio e sem fim. Creio que também fomos criados para não ter fim. O período que estamos aqui consiste apenas em uma transição, o permanente está após a morte. E nesse plano, é que predomina a eterna paz. Confio na palavra de Jesus: “quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (Jo,11,25). E, com essa certeza, é fácil entender que “é morrendo, que se vive para a vida eterna!”