A dois historiadores: é preciso ir além de 1964

06/abr 08:00
Por Gastão Reis

No domingo, 31/03/2024, foram publicadas interessantes entrevistas de dois historiadores, Heloisa Starling e Carlos Fico, sobre o tema, sempre em voga, do golpe de 1964. Dentro do espírito do debate civilizado, passo a fazer um breve resumo do que disseram com contrapontos que me parecem relevantes. Entrevistas bem-vindas em tempos de memória nacional fraca. Pelo jeito, a amnésia histórica do Patropi é um triste fato; entretanto, não se deve deixar passar em brancas nuvens quando se trata de Brasil. 

A historiadora Heloisa Starling, em seu recente livro, “A máquina do golpe – 1964: Como foi desmontada a democracia no Brasil”, afirma, com razão, que “na república, há uma disposição das Forças Armadas de tutelar”.  Usei “r” minúsculo para ressaltar a falta de compromisso da república no combate à desigualdade. A Profª. Heloisa acompanha a mesma visão de José Murilo de Carvalho em “Forças Armadas e política no Brasil”, em edição revista e ampliada, onde a nova Parte I tem como título “Uma república tutelada”.  

A Profª. Heloisa, no início da entrevista, nos fala da fatia reacionária da so- ciedade brasileira, comandada, segundo ela, pelo ex-presidente Bolsonaro, que tenta apagar o passado do golpe de 1964. Na verdade, a real origem de 1964 é  simplesmente omitida pela historiografia tradicional. Na eleição de 1960, a legislação eleitoral permitiu a seguinte esquizofrenia: o eleitor poderia votar para presidente num determinado candidato de perfil conservador e no vice, de outro partido, em posição ideológica oposta à do cabeça de chapa.

O vice do mesmo partido de Jânio Quadros era Milton Campos, intelectual mineiro conservador, cuja posse após a renúncia de Jânio Quadros teria evitado o golpe militar, além de manter fidelidade à opção conservadora do eleitorado ao votar em Jânio Quadros. A legislação eleitoral vigente corrigiu esta disfunção desastrosa, que nos levou a 21 anos de ditadura militar. 

A mesma historiadora, que conhece bem a trama de 1964, nos fala de sua discordância sobre o governo não promover eventos sobre os anos 1960 e do golpe de 1964. Estranhamente, ela se refere a Lula afirmando que “o compromisso do presidente com a democracia é real, não há o que discutir”. Será? Depois de Lula nos dar ciência da existência da democracia relativa, e estender tapete vermelho para o ditador Maduro quando veio ao Brasil, há, sim, muito o que discutir sobre as convicções democráticas de Lula.

Por fim, ela diz ainda que “Bolsonaro impôs às Forças Armadas um processo de destruição”. Não me parece ter sido o caso. Na verdade, o perfil de militar indisciplinado de Bolsonaro nunca se encaixou bem nas exigências de disciplina e hierarquia que devem comandar uma força armada sob pena de a tornar ator político, cujas mazelas são bem conhecidas na América Latina.

Mas a Profa. Heloisa Starling acerta no alvo quando propõe refazer o art. 142, que confere às Forças Armadas a garantia de poderes constitucionais, expressa na Carta de 1988, por ser dúbio, termo usado por mim no meu último artigo publicado, a despeito de juristas que discordam. Ela nos fala ainda de Getúlio Vargas, que teria construído uma narrativa sobre o perigo de comunistas armados face à intentona de 1935, que o municiou para a instalação do Estado Novo. Vargas, ao dizer que metade de seus ministros era incapaz e metade era capaz de tudo, dá bem a medida do tipo de pessoas de que se cerca um ditador.             

O historiador Carlos Fico nos diz que “a soberania do poder civil sobre a caserna, base da democracia, está mal resolvida e que o artigo 142 da Carta de 1988 baliza uma visão errada sobre o poder moderador”. Cabe acrescentar que se trata de uma função espúria da força militar. Em seu livro a sair este ano, “Utopia autoritária brasileira”, ele explora a história das aspirações intervencio-nistas dos militares e de certo tipo de civil que não entende sua gravidade. Fico condena, como sua colega, o fato de não haver cerimônias em relação a 1964.

Carlos Fico afirma, com razão, que “os militares brasileiros ao longo de toda a História foram um fator de instabilidade política”. Por respeito aos fatos históricos, cabe qualificar que foi algo típico da história republicana(!) brasileira. No Império, era claríssimo o artigo147 da constituição: “A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”. O poder civil comandava, de fato, os orçamentos militares e ocupava normalmente os cargos de ministros do exército e da marinha. Os civis tinham pavor de ver aqui os golpes que aconteciam nos países vizinhos desde o início do século XIX.

Fico nos fala ainda da fragilidade do Ministério da Defesa, criado por FHC. Na verdade, é um problema mal resolvido, desde 1889, em que os cadetes e oficiais do exército da Escola Militar do Realengo, com Benjamin Constant à frente, desde o início da república, resolveram dar ordem unida à sociedade civil, aquela que lhes paga o soldo. Uma inversão de valores dentre as diversas observadas nos últimos tempos no triste Patropi.

Ao mencionar a necessidade de nova redação para o artigo 142 da atual constituição que, segundo ele dá uma atribuição excessiva e indevida às Forças Armadas de poder moderador, é preciso ter em mente que a concepção de um poder moderador exercido por um monarca constitucional era justamente para que houvesse um dispositivo legal para coibir os abusos do andar de cima. O poder moderador nunca foi usado para oprimir o povo, e sim, para defendê-lo dos políticos.

A ambos os historiadores, parece ter escapado até certo ponto a extensão do estupro institucional sofrido pelo país com o golpe militar de 1889. A constituição de 1891 e as que se seguiram deixaram de ter instrumentos ágeis de controle das crises políticas dentro da legalidade, como ocorria ao longo do século XIX, no âmbito da Carta de 1824. Mesmo tardiamente, cabe à sociedade civil colocar os militares em seu devido papel institucional.

É preciso ir além de 1964 para pôr a casa em ordem.      

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