A emergência da espiritualidade natural

15/dez 08:00
Por Leonardo Boff

Há muitos que estão fartos de bens materiais e do consumismo de nossa cultura. Como contraponto a esta situação, estamos captando a emergência do mundo espiritual, da assim chamada espiritualidade natural, e verificamos sua premente atualidade face às muitas crises que assolam a inteira humanidade.

Em momentos assim críticos, o ser humano mergulha em seu Profundo e se coloca questões básicas: O que estamos fazendo nesse mundo? Qual é o nosso lugar no conjunto dos seres? Como agir para garantirmos um futuro que seja esperançador para todos e para nossa Casa Comum?

Essa preocupação pelo mundo espiritual não é monopólio das religiões. Ele se dá também no âmbito das buscas humanas tanto dos jovens, quanto dos intelectuais, de famosos cientistas e, para surpresa nossa, de grandes empresários que se mostraram interessados acerca do tema.

O fato de eles mostrarem interesse acerca do mundo espiritual, vale dizer, à espiritualidade, atesta as dimensões da crise que nos acomete. Significa que os bens materiais que eles produzem, as lógicas produtivistas e concorrenciais que praticam, o universo de valores comerciais (tudo virou mercadoria e ganha o seu preço) que inspira suas práticas não dão conta das interrogações sérias da vida humana. Há um vazio profundo, um buraco imenso dentro do seu ser. Estou convencido de que o mundo espiritual, ou a espiritualidade natural, inerente à nossa natureza, tem a capacidade de preenchê-lo.

É importante, no entanto, sermos críticos, porque há verdadeiras empresas que manejam os discursos da espiritualidade que, não raro, falam mais aos bolsos do que aos corações. Há líderes religiosos que são expressão do mercado com sua pregação do evangelho da prosperidade material e, recentemente, do domínio. Conquistam muitos fiéis de boa fé, para os interesses monetários de si próprios como pastores.

Entretanto, os portadores permanentes do mundo espiritual são geralmente pessoas comuns que vivem a retidão da vida, o sentido da solidariedade, e cultivam o espaço do Sagrado, seja em suas religiões e igrejas, seja no modo como pensam, agem, interpretam a vida e cuidam no meio ambiente.

O que importa, porém, é reconhecer que mundialmente há uma demanda por valores não materiais, porque os materiais se mostram insuficientes para apaziguar a ânsia do ser humano por algo mais alto e melhor. Em toda parte encontramos pessoas, especialmente jovens, indignados com o destino previamente definido em termos de economia, quando se diz que “não há outra alternativa” (TINA=There is no Alternative). Eles se recusam a aceitar os caminhos que os poderosos definem para a humanidade trilhar. Esses jovens dizem: “Não permitiremos que nos roubem o futuro. Merecemos um destino melhor, precisamos beber de outras fontes para encontrar um novo caminho”.

Por isso, resulta importante, desde o início, introduzir uma distinção, sem separar, mas distinguir, entre o mundo religioso e o mundo espiritual, entre a espiritualidade natural e a religião. Aliás, o Dalai Lama o fez de forma brilhante no livro Uma Ética Para o Novo Milênio (Sextante, Rio de Janeiro, 2000). Permito-me citar um tópico do livro de cuja compreensão participo e faço minha.

“Julgo que religião (mundo religioso) esteja relacionada com a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé. Crença esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma ideia de paraíso ou nirvana. Associados a isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações e assim por diante”.

“Considero que espiritualidade (mundo espiritual) esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano, tais como amor e compaixão, paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia, que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros”.

“Ritual e oração, junto com as questões de nirvana e salvação, estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam ser. Não existe, portanto, nenhuma razão pela qual um indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico”. (p.32-33).

Como se depreende, alguém pode ser religioso sem necessariamente ser espiritual. Bem como pode ser espiritual sem ser religioso. O ideal seria ser religioso e simultaneamente espiritual. Mas não necessariamente.

Há toda uma pesquisa, feita especialmente nos USA, que envolve psicólogos, educadores e a New Science que tem aprofundado a espiritualidade natural. Vale dizer, a espiritualidade como um dado objetivo da natureza humana. Famoso ficou o “Manual de Psicologia e de Espiritualidade” do Prof. Miller, no qual reúne os principais estudos sobre a psicologia e a espiritualidade natural. Aí se enfatiza que, independente da religião, “cada criança nasce com a capacidade inata para um desenvolvimento espiritual, capacidade que deve ser entendida como uma dimensão natural, da integralidade do ser humano; ela garante um suporte importante e vital para a resiliência, provê significado e propósito para o desenvolvimento da cognição emocional, social e moral da pessoa; essa capacidade inata pode madurar tanto dentro quanto fora da religião institucional”. À base destes estudos, Steven Rockefeller, filósofo e um dos principais redatores da Carta da Terra, propõe uma “democracia espiritual”, portanto, um dado originário que deveria estar presente desde a mais tenra infância e no currículo escolar (Spiritual Democracy, N.Y. 2022).

Viver a espiritualidade natural, dado de nossa natureza humana, com os valores referidos acima, que são também os mesmos do Jesus histórico, poderão sinalizar caminhos que nos apontam para uma eventual saída bem sucedida das muitas crises dos tempos atuais. O invisível do espírito faz parte do visível.

Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu: Saudade de Deus, Vozes, 2020; com frei Betto, Mística e espiritualidade, Vozes, 2010.

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