A escassez de água potável pode desencadear guerras e ameaçar a vida

23/04/2023 08:00
Por Leonardo Boff

Tão importante quanto a mudança de regime climático (aquecimento global) é indiscutivelmente a questão da água doce. Dela depende a sobrevivência de toda a cadeia da vida e, consequentemente, de nosso próprio futuro.

A água pode ser motivo de guerras bem como de solidariedade social e cooperação entre os povos. Mais ainda, como querem fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e seguramente dever-se-á criar o novo pacto social mundial que crie um consenso mínimo entre os povos e governos em vista de um destino comum, nosso e do sistema-vida.A crescente escassez de água doce pode pôr em risco a vida no planeta.

Na recente conferência em  Nova York por ocasião do dia da água (22/3) se lançou um alarme: “há o risco de uma iminente crise hídrica mundial afetando 2 bilhões de pessoas que não têm acesso a um suprimento de água portável”. A ONU lançou, por esta ocasião, uma “Agenda: ação para a água”. Nas palavras do secretário da ONU António Guterres “um programa ambicioso de ação sobre a água que possa oferecer a esse elemento vital para o nosso mundo o empenho que merece”. 

Independentemente das discussões que cercam o tema da  água, uma afirmação segura e indiscutível podemos fazer: a água é um bem natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum ser vivo, humano ou não, pode viver sem a água. Por ser vital e insubstituível a água não pode ser tratada como uma mercadoria a ser negociada no mercado.

Da forma com que tratamos a água, como mercadoria ou como um bem vital e insubstituível dependerá em parte o futuro da vida no planeta.

Mas antes, consideremos rapidamente os dados básicos sobre a água.

Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e distribuirmos equitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade.

97,5% é água salgada e  2,5% é água doce. Mais de 2/3 destas águas doces se encontram nas calotas polares e nas geleiras, no cume das montanhas (68,9) e quase todo o restante (29,9%) são águas subterrâneas. Sobram 0,9% nos pântanos e 0,3% nos rios e lagos de onde sai a maior parte da água doce para o consumo humano e dos animais, irrigação agrícola e uso industrial.Destes 0,3% 22% vai para a indústria, 70% para a agricultura. O pouco restante dos 0,3% é para os humanos e a comunidade de vida. 35% da população mundial, que equivale a um bilhão e 200 milhões de pessoas, carece de  água tratada. Um bilhão e 800 milhões (43% da população) têm acesso precário ao  saneamento básico. Tal fato faz com que cerca de dez milhões de pessoas morram anualmente em consequência de águas maltratadas.

O acesso à água doce é cada vez mais precário por causa da crescente contaminação dos lagos e rios e mesmo da atmosfera que provoca chuvas ácidas. Esgotos maltratados, uso de detergentes não biodegradáveis, emprego abusivo de agrotóxicos contaminam os lençóis freáticos, efluentes industriais despejados nos cursos d’água, devolvem aos rios envenenamento e morte, comprometendo a frágil e complexa cadeia de reprodução da vida.

Há muita água mas desigualmente distribuída: 60%  se encontra em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente, enquanto para 1.4 bilhões é insuficiente (já são agora 2 bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela escassez de água.

Não há problema de insuficiência de água, mas de má gestão dela para atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.

O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 70% na região amazônica, 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois 46% dela é desperdiçada, o que daria para abastecer toda a França,  a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão cultural. Não desenvolvemos uma cultura da água.

Há uma corrida mundial para a privatização da água. Aí surgem grandes empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel. Criou-se um mercado das águas que envolve mais de 100 bilhões de dólares. Aí estão fortemente presentes na comercialização de água mineral a Nestlé e a Coca-Cola que estão buscando comprar fontes de água por toda a parte no mundo. 

A água está se tornando fator de instabilidade no Planeta. A exacerbação da privatização da água faz com que ela seja tratada sem o sentido de partilha e de consideração de sua importância para a vida e para o futuro da natureza e da existência humana  na Terra.

Face a estes excessos, a comunidade internacional representada pela  ONU estabeleceu  nas reuniões de Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998), Rio de Janeiro (1992) consagrou “o direito de todos a terem acesso à água potável em quantidade suficiente e com qualidade para as necessidades essenciais”. 

O grande debate hoje se trava nestes termos já referidos acima:

A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como  mercadoria?

Ambas as dimensões não se excluem mas devem ser relativamente relacionadas. Fundamentalmente a água é direito à vida, como insiste o grande especialista em águas Ricardo Petrella (O Manifesto da Água, Vozes, Petrópolis 2002). Nesse sentido a água de beber, para uso na alimentação e  para higiene pessoal deve ser gratuita (cf. Paulo Affonso Leme Machado, Recursos Hídricos. Direito Brasileiro e Internacional, Malheiros Editores, São Paulo 2002, 14-17). Por isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a lei n.9.433 (8/1/97) sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos:”a água é um bem de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”.Veja-se o livro recente com todos os dados e leis de João Bosco Senra, Água, elemento vital,2022.

  Como porém a água é escassa e demanda uma complexa estrutura de  captação, conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao contrário, deve  torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a natureza comum, vital e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos econômicos, estes devem ser cobertos pelo Poder Público.

A água não é um bem econômico como qualquer outra. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como vida. E a vida, por sua natureza vital e essencial, jamais pode  ser transformada em mercadoria. A água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais do ser humano que a tornam preciosa e carregada de valores que, em si, não têm preço. São Francisco de Assis em seu Cântico às Criaturas se refere à água como “preciosa e casta”.

Para entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica precisamos romper com a ditadura que o pensar racional-analítico e utilitarista da modernidade impõe a toda a sociedade. Este vê a água como recurso hídrico para lucrar. 

O ser humano tem outros exercícios por sua razão. Há a razão sensível, a razão emocional e a razão espiritual. São razões ligadas ao sentido da vida e ao universo simbólico. Oferecem  não as razões de lucrar mas as razões de viver e conferir excelência à vida. A água é o nicho de onde há bilhões (3,8) anos surgiu a vida.

Como reação à dominação da globalização da  água se busca a republicanização da água. Explico: a água é um bem comum público mundial.  É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida.

Em função desta importância decisiva da água se criou o FAMA – o Fórum Mundial Alternativo da Água em março de 2003 em Florença, na Itália.  Junto a isso sugeriu-se criar  a Autoridade Mundial da Água  uma instância de governo público, cooperativo e solidário a nível das grandes bacias hídricas internacionais e de uma distribuição mais equitativa da água segundo as demandas regionais.

Função importante é pressionar os Governos, as empresas, as associações e aos cidadãos em geral para respeitarem a natureza única e insubstituível da água.Já que 75% de nosso corpo é composto de água, deve-se garantir a todos gratuitamente pelo menos 2 litros de água potável e sã, variando consoante as diferentes idades. As tarifas para os serviços devem contemplar os diversos níveis de uso, seja doméstico, industrial, agrícola, recreativo. Para os usos industriais da água e na agricultura, evidentemente, a água é sujeita a preço.

Incentivar a cooperação com todos os entes públicos e privados para impedir que tantos morram em consequência da falta de água ou em consequência de águas maltratadas. Diariamente morrem 6 mil crianças por sede. Os noticiários nada referem. Mas isso equivale a 10 aviões Boeing que mergulham nos oceanos com a morte de todos os passageiros como já aconteceu com a Air France, anos atrás. Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir à escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10  km de distância.

Paralelo a isso ocorre a articulação mundial para um Contrato Mundial da Água. Seria um contrato social mundial ao redor daquilo de que todos precisam e, efetivamente, nos une que é a vida das pessoas e dos demais seres vivos, indissociáveis da água.

Uma fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve incluir a sede zero, pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem a água. 

A partir da água, outra imagem da planetarização, hoje multipolar, surge humana, solidária, cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida e de reprodução da vida.

Ela é vida, geradora de vida e comparece como um dos símbolos mais poderosos da vida eterna, segundo as palavras daquele que disse: “sou a fonte de água viva, quem dela beber desta água viverá para sempre”.

Leonardo Boff ganhou o doutor honoris causa pelo departamento de Águas da Universidade de Rosário na Argentina e participou na ONU do grupo que estudou a questão da água a nível mundial.

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