A felicidade
Ainda tenho controle sobre o meu ceticismo. Não o confundo com descrença, desilusão, pessimismo. Ainda mantenho conceitos abertos, sigo com o pensamento nos versos de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ muda-se o ser, muda-se a confiança;/ todo o mundo é composto de mudança,/ tomando sempre novas qualidades.”
O tempo é agente de mudança. Coração e mente sofrem com o passar das horas. Quem tem os olhos voltados para a realidade tende a exercer o senso crítico. Lembro aqui os versos de uma canção de Raul Seixas: “Eu quero viver/ nessa metamorfose ambulante/ do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
O processo de mudança é inerente à educação, matéria do meu ofício que me faz confiar no ser humano. Ainda não desisti de acreditar na convergência de ideais para tornar mais harmoniosa a convivência entre os homens. Engessar a mente atrofia o crescimento, desestabiliza as relações humanas.
Colhemos com mais rapidez as consequências dos nossos erros do que os frutos das nossas boas ações. Por isso que os esforços que realizamos no aprimoramento da nossa maneira de ser somam para o bem-estar social. Ser mais um elo na corrente do Bem consiste em alimentar as esperanças de um mundo melhor. O discernimento sobre o caminho a seguir, às vezes, revela a nossa índole. Ainda vejo o caminhar de mãos dadas como a melhor opção.
O mundo não se escora em barrancos, por isso as mudanças são contínuas independentes dos nossos desejos. Às vezes, as mudanças desejadas não são as que ocorrem no ambiente em que vivemos. Ser um agente de transformação não é tão simples. É preciso ter coragem para dizer “não” por uma questão de coerência e compromisso com um projeto de vida em que as prioridades se concentram no bem comum. Por essa vertente, é fácil compreender o pensamento franciscano que nos diz:
“Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”
Para mim, a parte mais difícil está na resignação. O tempo tem me ajudado bastante nesse item. Quando criança queria que o mundo mudasse. Na juventude, empolgado com as utopias, queria mudar o mundo. Hoje, mais assentado no tempo, tento mudar-me e aceitar as mudanças para diminuir as zonas de atritos. Antes dava um boi para não entrar em conflito, hoje dou uma boiada…
Esse hábito de expor o que se pensa faz parte do exercício da cidadania assim como o pagamento de impostos. Ando nesta estrada mais resignado, contudo, continuo questionando os meus passos neste percurso. Não consigo calar e consentir sem uma explicação plausível.
Embora seja piauiense, tenho Petrópolis entranhada na minha vida. Nesta cidade, tive várias experiências tristes, marcadas por tragédias que me ajudaram a consolidar a ideia de que a felicidade só é possível em âmbito coletivo. Tom Jobim já afirmara que “é impossível ser feliz sozinho.” A amplitude dessa impossibilidade torna-se mais visível quando colocada no campo social.
Não senti nenhuma empolgação no carnaval que passou, nenhuma vontade de assistir aos desfiles das escolas de samba. Fiquei triste com a tragédia provocada pelas chuvas que caíram no Litoral Norte de São Paulo. Já tivemos aqui, em outros carnavais, situações semelhantes. Os traumas não acabam na quarta-feira de cinzas. Permanecem em nossa memória. Os anos passam e as tragédias continuam ceifando vidas. Só mudam as regiões. Petrópolis continua com as chagas abertas…
Nem toda culpa pode ser atribuída aos fenômenos naturais. Há um evidente descaso dos gestores públicos. Se de um lado, existem os insensíveis que tentam lucrar com a desgraça alheia; do outro, há pessoas humanas que se doam, sacrificam-se para ajudar a quem necessita. A humanidade é assim, o país é assim, somos assim. Mas precisamos mudar, caso haja o propósito de materializar o conceito de felicidade, que não pode ser confundida com euforia, empolgação, ou alegrias passageiras…
Desconectar dos problemas pode ser uma alternativa para “curtir o carnaval”, mas não leva à solução deles, uma vez que não entram em recesso, não tiram férias. Há problemas crônicos como a miséria, o desemprego, a falta de moradia…
Quem não vive no mundo da egolatria entende o que afirmara o poeta John Donne:
“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.