A melodia do Luiz

14/08/2017 12:50

É árdua a luta para manter a autenticidade, principalmente no meio artístico, quando não se deixa influenciar pelo sucesso fácil e descartável. O vil metal é corrosivo. Resistir ao comodismo das formas, das fôrmas, das fórmulas provoca um grande desgaste, mas há a recompensa de não perder a identidade. E assim, ocupar um espaço ímpar. Mas, às vezes, só o fato de não seguir o senso comum é considerado transgressão, o suficiente para ser rotulado de “marginal”. A preservação da individualidade é necessária para não se perder no meio da massa. É fundamental saber a que caminho seguir. Por isso, é preciso definir aonde se pretende chegar. Tanto na vida, quanto na arte, personificar-se é imprescindível.

A palavra “singular” foi uma das mais citadas por artistas e críticos sobre a obra do senhor Luiz Carlos dos Santos, mas conhecido como Luiz Melodia, que faleceu em 04/08/2017.

Lembro o dia em que assisti a um show dele no Teatro João Caetano, no “Projeto Seis e Meia”. No início, alguém da plateia gritou: “Pérola Negra”. Ele cantou outra música. Novamente se ouviu: “Pérola Negra”. Ele não atendeu à solicitação, cantou outra canção. No meio do show, outras pessoas se manifestaram: “Magrelinha”; “Estácio, Holly Estácio”. Incomodado com as intervenções, falou:

– Gente, eu tenho outras composições, vocês precisam aprender a ouvir as músicas que nem sempre tocam no rádio. Existem muitas coisas boas que as rádios não tocam. Eu vou fazer um show cantando só “Pérola Negra”?…

Passei admirá-lo ainda mais a partir daquele dia. Ele cantou as músicas que foram pedidas. Mas primeiro fez o show que havia programado. Nem sempre as melhores músicas são as mais tocadas pelas rádios. 

A primeira vez que vi Luiz Melodia foi pela televisão, em 1975, no “Festival Abertura”. Ele participou com a música “Ébano”. Não me lembro da canção que ganhou o festival. Mas lembro da participação de Hermeto Pascoal, Jards Macalé. E, quando a carga dos problemas fica menos pesada, consigo cantar no banheiro:

 “Meu nome é ébano/ Venho te felicitar sua atitude/ Espero te encontrar com mais saúde/ Me chamam ébano/ O novo peregrino sábio dos enganos/ Seu ato dura pouco tempo se tragando/ Eu grito ébano/ O couro que me cobre a carne/ Não tem planos/ A sombra da neurose te persegue/ Há quantos anos (…)”

Ébano é uma madeira nobre, rara, escura, usada na fabricação de instrumentos musicais. A negritude assumida com elegância mostrava nitidamente a resistência dele contra as influências da arte apenas com fins comerciais. O sucesso, a fama vieram como consequência, embora não fossem os objetivos do seu trabalho.

 O morro do São Carlos, o bairro Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, deram-lhe “régua e compasso”. Com a leveza do passo carioca, seguiu sobre o fio da navalha, equilibrou a dor com as notas musicais. Cantou a região, na qual tinha as suas raízes. 

São Carlos e o Estácio marcaram também a obra de outro Luiz, o Gonzaga do Nascimento Júnior, conhecido como Gonzaguinha, outro sem igual, o que “ficou com a pureza da resposta das crianças.” “O sopro do Criador/ numa atitude repleta de amor” nos leva a pensar na vida em outra dimensão. 

Luiz Melodia partiu. Mas vão ficar, “no coração do Brasil”, as suas atitudes e canções. Vou lembrar-me sempre desse compositor que tantas vezes encontrei nas ruas do Rio como um cidadão comum, presente no cotidiano. Ele não foi um produto da mídia, soube traduzir a vida, o retrato do artista quando gente, não “quando coisa”. Transgredir é resistir: – existir.


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