A mente por trás dos heróis

23/02/2021 08:00
Por André Cáceres / Estadão

“Tudo no meu bairro era cinza e sujo. As cores só chegavam no domingo.” É assim que o quadrinista Tom Scioli descreve a dura infância de Jack Kirby, cocriador de personagens como Capitão América, Thor, Hulk, Quarteto Fantástico e X-Men na biografia em quadrinhos que chega ao Brasil pela editora Conrad. Nascido Jacob Kurtzberg, o ilustrador Jack Kirby (1917-1994) foi um dos principais responsáveis pela criação do chamado Universo Marvel e também relevante na editora rival, a DC Comics.

Em Jack Kirby: A Épica Biografia do Rei dos Quadrinhos, Scioli perpassa a vida do autor usando o recurso de narração em primeira pessoa, o que pode soar inverossímil, mas traz o biografado para perto do leitor. É por meio dessa lente intimista que é retratado o fascínio infantil por personagens de Hal Foster e Alex Raymond, como Príncipe Valente e Flash Gordon, que o influenciariam por toda a carreira, assim como pelas vunder-meyses contadas por sua mãe, histórias folclóricas e mitológicas da Galícia, região do império austro-húngaro, de onde seus pais judeus emigraram para os Estados Unidos.

Scioli, entretanto, também revela seu lado sombrio: Kirby era esquentado, impulsivo e briguento. Tomou parte em guerras entre gangues juvenis em seu bairro e chegou, inclusive, a cogitar entrar para a vida do crime, como fizeram alguns de seus amigos – na época, ele vivia no cinema, mas apenas se identificava com os filmes de gângsteres. O que o salvou de uma provável morte precoce foi o desenho.

Na adolescência, Kirby trabalhou como animador no estúdio de Max Fleischer (autor de Popeye e outros personagens) e depois para Horace T. Elmo, quando exercitou sua versatilidade fazendo desde tiras de marinheiros e ciganos a ficções sobre viagem no tempo. Aprendeu a cumprir prazos no estúdio de Will Eisner e Jerry Iger, em que trabalhou ombro a ombro com os também jovens Bob Kane (cocriador do Batman) e Lou Fine (um dos artistas de The Spirit).

O fim da década de 1930 foi um ponto de virada em sua carreira: em 1938, o Superman apareceu pela primeira vez nas páginas da edição inaugural da Action Comics, reunindo os elementos da ficção científica e da literatura pulp que encantavam Kirby, mas combatendo problemas do mundo real, como políticos corruptos e o crime organizado, que ele conhecia bem.

Nessa época, ele firmou parceria com Joe Simon, com quem criaria dezenas de títulos e personagens. Os primeiros super-heróis em que eles trabalharam eram meros derivativos, como Blue Beetle, Blue Bolt e Red Raven. No entanto, a mescla de temas elevados e mundanos trazida pelo Superman marcaria profundamente sua criação posterior, o que pode ser notado em Mercúrio, gibi sobre um deus antigo que enfrenta ameaças modernas – que ecoaria nos anos 1960 em Thor e sua mistura de mitologia nórdica, tragédia grega e ficção científica.

As origens de suas principais criações já estavam naqueles tímidos primeiros anos de carreira. Kirby fez alguns cartuns políticos sobre a guerra que tomava corpo na Europa – a HQ de Tom Scioli reproduz um em que Neville Chamberlain, então primeiro-ministro da Inglaterra, passa a mão na cabeça de uma cobra com o rosto de Hitler digerindo a recém-invadida Checoslováquia em sua barriga. Essa experiência forneceu o escopo ideológico para sua primeira grande criação, em parceria com Joe Simon, para a Timely Comics (que viria a se tornar a Marvel): o Capitão América, que surgiu socando Hitler em sua primeira capa, em 1940 – embora a revista fosse datada de março de 1941, já estava nas bancas em dezembro anterior, antes mesmo da entrada dos EUA na 2ª Guerra Mundial.

O herói alçou Kirby à fama pela primeira vez, mas rendeu ameaças da Federação Teuto-Americana, uma organização nazista sediada nos Estados Unidos e que esteve em funcionamento entre 1936 e 1941. No entanto, o então prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, fã confesso de quadrinhos, ofereceu proteção política e policial para a Timely Comics continuar publicando o Capitão.

A maior ironia da vida de Kirby veio em 1943, quando ele foi convocado para o Exército norte-americano. Outros artistas, como Stan Lee – com quem Kirby nunca se deu bem, mas que acabaria sendo seu parceiro mais prolífico -, também foram convocados, mas ocuparam funções que os mantinham longe do front. Já Kirby esteve na mira dos alemães diversas vezes e sobreviveu por muito pouco aos muitos tiroteios que enfrentou.

“Enquanto eu levava tiros dos nazistas de verdade, Capitão América levava tiros no cinema. O filme foi uma porcaria, de orçamento zero”, narra ele na HQ de Scioli. “Eu e Joe não tiramos um tostão do filme.

Nossos nomes nem apareceram.” A falta de reconhecimento – em termos financeiros, não de prestígio – é uma tônica ao longo da vida de Kirby.

Passado o trauma da guerra, que o artista iria retratar em várias de suas histórias posteriores, Kirby retomou a parceria com Joe Simon, mas os quadrinhos não eram mais os mesmos. O interesse pelos super-heróis já vinha em declínio desde meados dos anos 1940, mas afundou de vez nos anos 1950, principalmente após a cruzada moralista empreendida pelo psicólogo Fredric Wertham, cujo livro A Sedução do Inocente acusava – sem qualquer tipo de evidência científica – as HQs de transformar os leitores mirins em jovens delinquentes. As afirmações infundadas encontraram coro em pais furiosos e no contexto da perseguição macarthista que dominava os EUA, resultando na criação, em 1954, do Comics Code Authority, um código de autocensura dos quadrinhos que vigorou por meio século.

Nesse cenário de crise, Jack Kirby se uniu a outro dos quadrinistas mais importantes da época, Wallace Wood, um dos fundadores da revista Mad, e aos irmãos roteiristas Dick e Dave Wood – que não eram parentes de Wallace -, para lançar Sky Masters da Força Espacial. A tira diária publicada entre 1958 e 1961 refletia a era da corrida espacial e foi reunida em volume único recentemente no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim. Na tira, Kirby e os Woods tratavam dos percalços da colonização do espaço, não imaginando o futuro distante – como fez a ficção científica da década de 1950 com Isaac Asimov, Arthur C. Clark e Robert A. Heinlein. Em vez disso, os arcos narrativos imaginavam o primeiro humano no espaço, um fanático religioso sabotador na primeira estação espacial, um pouso complicado de um astronauta no oceano, entre outros temas mais realistas.

Quando Kirby perdeu uma disputa judicial pelos direitos da tira, ele se viu novamente no fundo do poço e obrigado a recorrer ao homem que, segundo ele suspeitava, havia sido o pivô de sua primeira demissão da Timely/Marvel, anos antes: Stan Lee. Curiosamente, a Marvel também estava na pior. “A divisão de quadrinhos respirava por aparelhos”, lembra Lee na HQ. Quando Kirby entrou em seu escritório, “tinha gente levando a mobília embora”. Apesar das divergências entre eles, começou a maior parceria da história dos quadrinhos.

De 1961 em diante, Jack Kirby e Stan Lee participaram tanto da elaboração de conceitos para novos heróis, como o Homem-Aranha de Steve Ditko, quanto na criação direta de personagens como Quarteto Fantástico, X-Men, Homem de Ferro, Hulk, Thor, Pantera Negra, Feiticeira Escarlate, Homem-Formiga, Inumanos, Surfista Prateado, Galactus, entre outros. Talvez a mais importante ideia de Kirby tenha sido a de mesclar as histórias de revistas diferentes, fazendo com que seus personagens coabitassem o mesmo universo ficcional – como já ocorria com a Liga da Justiça, na DC – e abrindo caminho para tramas cada vez mais complexas, narradas em várias publicações paralelas e simultâneas, chave para o sucesso da Marvel nos anos 1960 e 1970 – e emulada nos filmes mais recentes da empresa.

Além de criar novos heróis, Kirby revitalizou direta ou indiretamente criações dos anos 1940, como o Príncipe Namor, o Demolidor e, é claro, seu Capitão América. “Assim como eu, o Capitão era um homem deslocado no tempo. De volta a um mundo que ele não reconhecia. A guerra o havia transformado em outra pessoa”, diz Kirby em uma das reminiscências da biografia. “Eu me sentia cada vez mais um velho fora de sintonia. As coisas mudavam muito rápido.” Kirby, que quase morreu congelado na guerra, fez o Capitão ser resgatado de um bloco de gelo para um mundo que não compreendia e no qual sua existência era anacrônica.

Nos anos 1970, Kirby teve uma rápida porém relevante passagem pela DC. Cansado de não receber crédito na Marvel, levou um panteão de ideias para a editora rival, onde modernizou o Superman, criou os Novos Deuses e transformou Stan Lee em vilão com o Funky Flashman, uma sátira jocosa do escritor, que considerava um oportunista e aproveitador do trabalho alheio. Em 1976, porém, retornou à Casa das Ideias e criou o último de seus principais trabalhos, Os Eternos, cuja adaptação estreia nos cinemas este ano.

A biografia de Scioli não trata muito da vida pessoal de Kirby, dando a entender a todo momento que ele trabalhava demais para poder aproveitar a vida em família com a mulher e os quatro filhos. Mas há páginas narradas por sua mulher, Roz Goldstein, dando um vislumbre saboroso de sua vida particular – como quando ela tentou ensiná-lo a andar de bicicleta, já adulto.

Kirby sempre remoeu a falta de reconhecimento e Scioli chega a encampar suas paranoias – como a de que Darth Vader foi uma cópia de seu Doutor Destino, vilão do Quarteto Fantástico. No fim da vida, acabou recebendo o crédito por suas contribuições e é visto como um dos principais responsáveis pelo estabelecimento do Universo Marvel. Toda essa jornada teve início quando ele encontrou uma revista pulp jogada na sarjeta do bairro em que vivia na infância, o Lower East Side, de Manhattan, e se encantou pela colorida nave espacial em sua capa. Sem Jack Kirby, a cultura pop contemporânea seria muito diferente – e menos colorida.

JACK KIRBY

Autor: Tom Scioli

Tradução: Érico Assis

Editora: Conrad

208 páginas

R$ 99,90 e R$ 49,90 o e-book

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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