‘A Nicarágua se tornou uma ditadura sangrenta’

28/08/2022 11:00
Por José Fucs / Estadão

O jornalista Carlos Chamorro, de 66 anos, pertence a uma família com longa tradição no jornalismo e na política da Nicarágua. Filho da ex-presidente Violeta Chamorro (1990-1997) e de Pedro Joaquín Chamorro, ex-publisher do jornal La Prensa, assassinado em 1978, durante a ditadura de Anastasio Somoza, ele cresceu acompanhando de perto o cenário turbulento que marcou boa parte da história da Nicarágua.

Fundador e editor do site Confidencial, que hoje comanda do exílio, na Costa Rica, onde vive desde junho de 2021, Carlos Chamorro comenta nesta entrevista, que faz parte da série do Estadão sobre o avanço da esquerda na América Latina, o caráter autoritário do regime do presidente Daniel Ortega e a dura repressão desencadeada por ele contra seus opositores, a imprensa e a Igreja.

Como o sr. vê o confisco da sede do ‘La Prensa’, anunciado pelo governo?

Na Nicarágua, o confisco de bens é proibido pela Constituição. O regime, porém, já havia confiscado o Confidencial, veículo que eu dirijo do exílio, o 100% Notícias, cujo proprietário está preso, e agora confiscou o La Prensa, que tem três diretores presos e estava ocupado pela polícia desde o ano passado. Incluindo máquinas e equipamentos apreendidos pelo governo, é um patrimônio avaliado em US$ 10 milhões. Isto é um roubo descarado, um ato de delinquência. Mas eles não conseguirão calar o La Prensa. Ortega pode confiscar os meios de comunicação, mas não pode confiscar o jornalismo independente, que continuará a informar do exterior a população, através das plataformas digitais, e a fiscalizar o poder.

Qual a sua visão sobre o regime de Ortega?

Atualmente, só se pode definir o regime da Nicarágua como uma ditadura. Durante mais de uma década, de 2007 a 2018, Ortega já havia implantado uma ditadura institucional, que fechou completamente o espaço político. Ele concentrou o poder, cometeu fraudes eleitorais e restringiu a democracia. Adquiriu o controle total do Parlamento e do Judiciário, da Procuradoria, da polícia e do Exército. A partir dos protestos cívicos de 2018, quando as pessoas saíram às ruas para se manifestar contra a reforma na Previdência Social, a ditadura institucional se tornou uma ditadura sangrenta, que matou mais de 300 pessoas e desencadeou uma repressão que levou à prisão de mais de 1.200 pessoas, forçou o exílio de centenas de milhares e passou a perseguir a Igreja Católica.

Que reflexo tudo isso teve nas eleições de 2021?

Com a aproximação das eleições de 7 de novembro de 2021, essa ditadura terminou de fechar o espaço político ao anular a concorrência, prendendo os sete pré-candidatos da oposição, incluindo minha irmã Cristiana, e colocando na ilegalidade os partidos. Em setembro de 2021, impôs-se um Estado policial. Não houve um decreto impondo o “Estado de emergência”. Simplesmente suspenderam de fato os direitos constitucionais. Na Nicarágua, há um Estado de exceção de fato, com a criminalização dos direitos constitucionais – a liberdade de reunião, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão.

Nas eleições, houve muitas acusações de fraude. O que o sr. pensa sobre isso?

Embora os resultados tenham conferido a Daniel Ortega uma vitória com mais de 70% dos votos, houve altíssima abstenção. Nós fizemos uma pesquisa pós-eleitoral para checar isso. Contratamos uma empresa que fez uma pesquisa telefônica e os resultados indicaram que o nível de apoio obtido por ele foi menor que 20%. Depois dessa farsa eleitoral, houve uma radicalização do regime. A ditadura adquiriu um traço ainda mais totalitário.

Como se deu essa radicalização?

Não foi uma radicalização no sentido de promover transformações sociais e políticas, mas de aprofundar o autoritarismo. Hoje, na Nicarágua, há 190 presos políticos. Todos já foram condenados a penas que variam de 8 a 13 anos em simulacros de julgamento, feitos na própria prisão. Foram canceladas 1.400 organizações não governamentais, entre elas associações de beneficência e promoção dos direitos democráticos. Foi radicalizada a perseguição contra a imprensa independente. Hoje, há mais de 120 jornalistas no exílio.

Ironicamente, Ortega foi líder do movimento sandinista, que lutou contra a ditadura Somoza, e se tornou um ditador igual aos que combatia. Como o sr. avalia este paralelo histórico?

Nos protestos de 2018, a palavra de ordem era “Ortega e Somoza são a mesma coisa”. A população o vê como um ditador que está à frente de uma ditadura familiar semelhante à dos Somoza. Minha tese é que ele nunca teve compromisso com a democracia. No fim das contas, no DNA do Daniel Ortega há um stalinista. Ele quer imitar a liderança que Fidel Castro representou em Cuba, no sentido de uma liderança individualizada, personalista.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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