A paixão de Hemingway por Paris

11/12/2021 08:00
Por Ubiratan Brasil / Estadão

Três dias antes do Natal de 1921, um navio deixou o americano Ernest Hemingway, então com 22 anos, e sua mulher, Elizabeth Hadley Richardson, no porto francês do Havre, onde eles tomaram um trem até Paris. Não era a primeira vez que ele pisava em solo francês (passara por lá durante a Primeira Guerra Mundial), mas agora era o início de uma longa e frutífera relação, ponto de partida para Hemingway escrever suas principais obras como O Sol Também se Levanta (1929).

“Logo ao chegar, Paris entregou ao rapaz um dos seus dons mais bem-amados: o espírito de liberdade e de sentir-se acolhido. Liberdade para viver e trabalhar em busca de uma escrita própria e a sensação de ter todo o tempo do mundo para esse trabalho, sem um editor que lhe dê pauta”, observa Benjamim Santos, autor de Hemingway e Paris (Gryphus), livro que ganha nova edição e detalha a importância da ligação com a cidade.

Santos é um técnico em educação que sempre se interessou por Paris e, nas várias visitas que fez à capital francesa, buscou os pontos por onde passou o escritor (a quem trata por Hem), procurando identificar a força da influência. “Paris concedeu a Hemingway uma das marcas mais fortes da cidade, a de sentar-se num café para ler e escrever, hábito que ele carregou para sempre transferindo-o para os bares de outras cidades”, explica. “Ao lado disso, houve o encontro de pessoas especiais que o acolheram e se tornaram amigos. Conhecer Sylvia Beach e a livraria Shakespeare and Co. foi primordial, assim como James Joyce, Ezra Pound e Gertrude Stein. Ler Ulisses, de Joyce, lançado dois meses depois da chegada de Hem, abriu o horizonte do rapaz para a liberdade também na escrita.”

Hemingway lutou tanto na guerra quanto para encontrar a palavra exata

A relação entre Ernest Hemingway e a capital francesa foi, de fato, marcante. Na abertura do livro Paris É uma Festa, publicado postumamente em 1964 (o escritor se matou três anos antes), ele escreve que, se alguém teve a sorte de morar na capital francesa quando jovem, terá da cidade uma lembrança para toda a vida. Para ele, a vivência foi definitiva – herói da Primeira Guerra, o escritor vivia em Chicago incomodado com a consciência de que a América estava tomada pela euforia materialista triunfante que era a morte da alma. E, na prática, não tinha um tostão no bolso. Assim, em 1921, como correspondente do jornal canadense Toronto Star e com uma carta de recomendação para ser entregue à escritora Gertrude Stein, ele chegou a Paris.

Lá, ele aprendeu a utilizar com rigor a língua inglesa, principalmente com Stein e com Ezra Pound, com quem trocava lições de literatura por aulas de boxe. “Chame as coisas pelo nome certo”, escreveu o poeta. De Paris, Hemingway tornou-se um grande viajante, correndo atrás de guerras, revoluções e safáris. “Depois de dez anos de convivência amorosa e uma pequena desilusão, o escritor deixou Paris e a relação entre os dois tornou-se como a dos casais que se amam ardentemente, mas preferem viver em casas separadas, visitando-se com frequência”, compara Santos.

Tornou-se conhecido também por suas façanhas. Esteve na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), em que acompanhou as forças republicanas que lutavam contra o franquismo. Em 1944, na Segunda Guerra, trabalhou no serviço de espionagem, fazendo contatos entre os aliados e a resistência francesa. Cada aventura ajudava Hemingway a alimentar sua lenda, o que o motivava a buscar novas histórias para ficar à altura de sua imagem.

PRAZER

“Hem sempre viveu o prazer da aventura desde criança de férias ao lado do pai e adolescente sozinho pelas florestas do Michigan. Nos primeiros anos de Paris, assumiu escrever sobre o que vivera por ter domínio disso e não viver certas situações para ter assunto sobre o que escrever. Ele sempre teve por regra ‘escrever somente sobre o que souber’ e do que ele mais sabia era de sua própria vida”, observa Santos.

Logo, sua escrita se tornou lendária e objeto de culto. “Hemingway transformou a prosa narrativa em um meio físico despojado de tudo o que era cerebral e extravagante, um meio adequado ao herói à moda Hemingway – duro, estoico, sofredor, exibindo o tipo de coragem à moda Hemingway que ficou conhecida como ‘grance under pressure’ (dignidade, ou elegância, sob pressão)”, observa outro escritor, Anthony Burgess, em Ernest Hemingway (Jorge Zahar Editor).

“Os contos foram seu caminho de aprendizagem”, completa Benjamim Santos. “Com eles, Hemingway recebeu a aprovação unânime e o elogio dos críticos literários, mas foi pelos romances que obteve o renome editorial, a grandiosidade de vendas e a popularidade que o fizeram entrar ‘na história’. Escrevendo contos, quando aprendeu a encontrar ‘a palavra exata’, num trabalho que ele considerava árduo, criou o estilo que marcaria sua obra literária e que influenciaria toda uma geração.”

FIM

O suicídio, porém, sempre rondou a trajetória de Hemingway – foram muitos exemplos, como o do próprio pai. “Ainda jovem, já tomou como ideia fixa dar fim ao seu destino se chegasse a um momento em que não valesse mais viver”, conta Santos. “A alguns amigos, propôs o pacto de que um avisasse o outro se decidisse suicidar-se, mas ninguém aceitou. Chegando aos 60 anos, em meio a crises de depressão e tratamento com choque elétrico, tentou várias vezes, mas sempre conseguiam evitar, até que burlou a família e deu-se fim com uma de suas espingardas que não haviam escondido.”

Mesmo que sua literatura já não tivesse mais o brilho do início de carreira e fisicamente padecesse de muitos males, Hemingway viveu seus últimos anos coroado pela glória. “Sua refinada combinação de machismo e estoicismo existencial cativou uma geração perdida e aniquilada pela guerra”, escreveu o jornalista Ron Charles no jornal The Washington Post. “Seu estilo elíptico hipnotizou leitores por décadas – e continua tão contagioso que os estudantes ainda se entregam a seu tom impassível, a sua simplicidade declarativa.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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