A política para as vísceras
Comer. Beber. Intestinar. Sei que a expressão “boas festas”, muito usada nos finais de ano, está relacionada às “comemorações” que geralmente estão acompanhadas de “bebemorações”. O comer e o beber para festejar são hábitos praticados milenarmente em todas as civilizações, até são ritualizados em contextualizações religiosas.
O comer e o beber estão na inerência do viver. Os animais, racionais ou não, têm a existência dependente de tais hábitos. O organismo humano precisa de “pão e água” para manter as funções vitais. Contudo, o estômago não pode exercer o controle do cérebro. A glutonaria deve ser evitada, assim como o alcoolismo.
Carrego o pecado da gula explícito na minha massa corpórea. Também peco pelo sedentarismo. Sei o quanto é difícil contê-la. Resistir às tentações gastronômicas não é muito fácil. É válido ressaltar que a gula conta com alguns fatores favoráveis a ela como a ansiedade, o estresse, os mecanismos de compensação que buscam o prazer proveniente do paladar. É fácil se deixar seduzir por uma barra de chocolate, por um churrasquinho, uma comidinha caseira…
Pelo álcool, não me sinto atraído. O meu espaço se concentra entre o vinho e a cajuína, não muito além. E prefiro coco a coca.
Quero deixar claro que não sou contra a expressão “boas festas”. Mas, para que haja “boas festas”, é necessário ir além da “comemoração”, deve haver “confraternização”. “Confraternizar” é diferente de “comemorar”. Essa diferença não é excludente. É possível confraternizar em uma comemoração. E comemorar uma confraternização. O que não aprecio consiste no fato de reduzir o viver à idolatria do “comer” e “beber”. Torna-se agressiva a ostentação da riqueza material, do luxo, da luxúria, do supérfluo. Digo isso porque, em nosso país, 62,525 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha pobreza. O que equivale a 29,4% da população sobrevivendo com menos de R$ 16,20 por dia. Esses dados estatísticos são da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como desejar “boas festas” para essa população que vive em extrema pobreza? Como esbanjar tanta “comilança” diante de tanta gente faminta?
Não há dúvida que a pandemia contribuiu para o aumento da pobreza extrema em todo mundo. É dito popular que “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”. Sim, são os pobres que sempre pagam a conta. E aqui cabe um esclarecimento: a linha de pobreza corresponde ao grupo de pessoas que vivem com menos de US$ 5,50 por dia, ou seja, R$ 486,00 por mês. A linha de extrema pobreza está delimitada entre as pessoas que vivem com US$ 1,90, isto é, R$168,00 por mês. Esses critérios são usados pelo Banco Mundial, levando em consideração o Poder de Paridade de Compra (PPC).
Quando olhamos para os números referentes à população infantil da Nação, é possível entender o aumento da descrença em Papai Noel. São 20,3 milhões de crianças que vivem sem as mínimas condições de bem-estar. Além da falta de alimento, há também a falta de uma educação de qualidade para que possam aspirar a um futuro melhor.
A preocupação social tem que ir além do estômago. É claro que o alimento é imprescindível, mas nem só de “pão vive o homem”. Esse problema não será resolvido com a manutenção do auxílio de R$ 600,00 por família, nem com o adicional de R$ 150,00 mensais por criança de até 6 anos de idade como está previsto no programa do próximo governo. É necessário investir também na melhoria do sistema educacional, em saneamento básico, em saúde, em habitação e na criação de empregos. Em síntese, essa política assistencialista atende a população em caráter emergencial. É preciso criar condições para que saia dessa dependência dos programas de governo. Por isso que a capacitação profissional deve estar entre as prioridades voltadas para a formação de “brasileiros e brasileiras” para que possam exercer uma cidadania com independência.
Todos sabem que as políticas assistencialistas são sempre mencionadas na captação de votos. Contudo, a democracia plena só ocorre quando há autonomia no discernimento das opções que se apresentam no processo eleitoral.
Coxinhas e mortadelas não são critérios norteadores para a escolha de candidatos para cargos eletivos. A política do “pão e circo” (panem et circenses) é antiga, era praticada antes de Cristo. As políticas sociais não podem ficar restritas às concessões de auxílios emergenciais. Na cesta básica, deve conter também educação, saúde e moradia decente.