A Politização da Polícia Civil

22/09/2023 08:00
Por Juliana Ziehe

De vez em quando, um dos assuntos que sempre retornam às pautas da segurança pública de Petrópolis, são as possíveis trocas dos Delegados Titulares que estão à frente das Delegacias do Município, isto é, 105º DP e 106º DP. Todavia, ao contrário do que possa parecer, esse não é um fato isolado de Petrópolis, mas uma realidade de todos os Municípios do estado do Rio de Janeiro, inclusive da Capital.

Aliás, a transferência desses atores acaba gerando uma série de efeitos sobre a segurança pública, dentre eles, um delay nos procedimentos investigativos até que a nova autoridade policial se inteire sobre tudo que está acontecendo na unidade. A frequência dessas modificações também frustra a expectativa da sociedade em torno do órgão policial, pois há uma sistemática interrupção das investigações em andamento.

A troca de Delegados Titulares é reflexo do contorno político que assume a nomeação para o mais alto cargo da instituição – o Secretário de Polícia Civil, outrora chamado de Chefe de Polícia. Em outras palavras, por ser um cargo em comissão do governador do estado, de livre nomeação e exoneração, o critério político-partidário para a escolha desse gestor acaba se disseminando por toda a Polícia Civil. Dessa forma, as mudanças realizadas pelo poder executivo acabam gerando um efeito cascata sobre toda corporação, desde as delegacias até a corregedoria interna e os departamentos que integram o órgão.

As modificações institucionais em tela até poderiam ser enxergadas com certa naturalidade, caso não recaíssem sobre uma instituição com envergadura constitucional e envolvessem atores do sistema de justiça criminal. A função para apurar infrações penais, atribuídas às Polícias Civis, é deveras importante para a garantia da segurança pública, principalmente pela perspectiva do filtro processual, constituindo importante ferramenta para evitar acusações infundadas.

Com efeito, as transferências de policiais civis acabam encontrando campo fértil na ausência de garantias institucionais eficazes, que tenham por objetivo blindar o exercício da função investigativa. O que se percebe, na prática, é a falta de regulamentação que defina critérios objetivos para a lotação de servidores, em especial dos Delegados de Polícia – titulares, que estão à frente não só da gestão administrativa das Delegacias, mas também de importantes investigações.

Fato é que, em um Estado Democrático de Direito, guiado por princípios constitucionais que norteiam a Administração Pública, o discurso genérico da discricionariedade e necessidade das remoções vão perdendo espaço. A bem da verdade, esse tipo de “pseudo- fundamentação” abre espaço para favorecimentos pessoais e para a ingerência política sobre a instituição policial. A título de ilustração, imagine uma investigação conduzida por um Delegado de Polícia sobre determinado fato que envolva agentes políticos integrante da alta cúpula do governo. Nesse caso, a investigação poderia ser facilmente prejudicada pela simples transferência das autoridades policiais envolvidas no trabalho. A transferência para outras unidades, por si só, já acarretaria prejuízo para as investigações, por desmobilizar um grupo de profissionais encadeados, entre si e com o Ministério Público, e com conhecimento específico sobre todas as diligências em andamento.

Com efeito, diante da inexistência de critérios objetivos para a lotação de servidores, poderia ser nomeado para o cargo um novo delegado alinhado ao grupo político no poder, o que constituiria retrocesso para o procedimento investigativo. Além do mais, uma remoção imposta, de forma arbitrária e sem fundamentação, deixaria transparecer uma mensagem, tanto para a sociedade quanto para a corporação: o da impunidade de agentes políticos e de punição dos policiais que ousarem investigar esse grupo, que não terão outro destino senão o da transferência de suas unidades originárias de lotação. Nesse caso, preferencialmente, para uma localidade muito distante de sua residência, com uma carga horária de plantões desumanas, constituindo verdadeira represália ao servidor. Cria-se, assim, uma espécie de grupos de pessoas blindadas por forças políticas, inatingíveis pelo sistema de justiça criminal.

A previsão de forma inédita da atividade policial pela Constituição federal de 1988, bem como a necessidade de motivação para a remoção do Delegado de Polícia pela Lei 12.830/13, não foram suficientes para blindar a função investigativa contra a ingerência política. Ademais, as garantias de autonomia e independência atribuídas às Polícias Civis encontram ainda forte resistência por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário. O que se percebe é que esses atores ignoram a análise da politização da polícia, reduzindo o tema à literalidade do dispositivo constitucional que subordina os órgãos policiais aos governadores de estado.

Aliás, foi dessa forma, inquietando-me com o assombroso número de remoção dos delegados e o silêncio dos mais diversos setores da sociedade, que me dediquei ao estudo da relação político-partidária existente entre os órgãos policiais com agentes políticos integrantes da alta cúpula do governo, que culminou na obra Delegado de Política: uma análise do fenômeno da politização da polícia. O livro pode ser adquirido na livraria Nobel, situada na rua 16 de março, ou pelo site da editora appris, caso o leitor tenha interesse em se aprofundar no tema.

Portanto, diante da importância que assume a atividade investigativa em um Estado Democrático de Direito, a preocupação que se coloca é a cooptação da instituição policial e de seus servidores para que sejam postos a serviço do Executivo estatal e de grupos políticos no poder, desvirtuando a função constitucional atribuída à Polícia Civil para atender interesses político-partidários.

No mais, espero que o livro e o olhar crítico sobre a Polícia Civil possam instruir melhor o leitor, auxiliando a promover uma instituição com mais autonomia, livre dos grilhões da politização.

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