A prática do bom senso em Jesus e no Papa Francisco

29/05/2022 09:00
Por Leonardo Boff

O eixo estruturador dos discursos do Papa Francisco não são tanto as doutrinas e os dogmas da Igreja Católica. Não que as preze menos. Sabe que são criações teológicas criadas historicamente. Elas provocaram guerras de religião, cismas, excomunhões, teólogos e mulheres (como Joana D’Arc e as tidas por “bruxas”) queimados na fogueira da inquisição. 

O Papa Francisco revoluciona o pensamento da Igreja remetendo-se à prática do Jesus histórico. Ele resgata o que hodiernamente se chama “a Tradição de Jesus” que é anterior aos atuais evangelhos, escritos 30-40 anos após a sua execução na cruz. A Tradição de Jesus ou também, como nos Atos dos Apóstolos se chama “o caminho de Jesus” se funda mais em valores e ideais do que em doutrinas. Essenciais são o amor incondicional, a misericórdia, o perdão, a justiça e centralidade dos pobres e marginalizados e a total abertura a Deus Pai. Jesus de Nazaré quis nos ensinar a viver. Viver com fraternidade, solidariedade e cuidado de uns para com os outros e total abertura ao Deus-Abbá. Estes são os conteúdos de sua mensagem: o Reino de Deus.

O que mais se ressalta em Jesus é o bom-senso. Dizemos que alguém tem bom senso quando para cada situação tem a palavra certa, o comportamento adequado e quando atina logo com o cerne da questão. O bom-senso está ligado à sabedoria concreta da vida. É distinguir o essencial do secundário. É a capacidade de ver e de colocar as coisas em seu devido lugar. 

Jesus, como nos testemunham os evangelhos, evidenciou-se como um gênio do bom-senso. Um frescor sem analogia perpassa tudo o que diz e faz. Deus em sua bondade, o ser humano com sua fragilidade, a sociedade com suas contradições e a natureza com seu esplendor comparecem numa imediatez cristalina. Não faz teologia. Nem apela para princípios morais superiores. Nem se perde numa casuística tediosa e sem coração. Suas palavras e atitudes mordem em cheio no concreto onde a realidade sangra e leva a pessoa a tomar uma decisão. E a decisão é sempre em favor dos sofredores.

Suas admoestações são incisivas e diretas: ”reconcilia-te com teu irmão”(Mt 5,24). “Não jureis de maneira nenhuma”(Mt 5, 34)“Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”(Mt,5, 34). “Quando deres esmola, que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”(Mt 6, 3).

Esse bom-senso tem faltado,não raro, à Igreja institucional (Papas, bispos e padres), não tanto à Igreja da base na qual predomina a solidariedade e a participação. Não se rege pelo poder mas pelo amor fraterno e pela misericórdia. Os santos e sábios nos advertem: onde impera o poder, se esvai o amor e desaparece a misericórdia.

Exemplo destas atitudes comparece o Papa Francisco. A qualidade principal de Deus, nos diz,  é a misericórdia. À miúde repete: “Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso”(Lc 6, 36). Ele explica o sentido etimológico da misericórdia: miseris cor dare”: “dar o coração aos míseros”, aos que padecem. Numa fala no Angelus  de 6 de abril de 2014 diz com voz alterada: ”Escutai bem: não existe limite algum para a misericórdia divina oferecida a todos”. Pede que a multidão repita com ele: “Não existe limite algum para a misericórdia divina oferecida a todos”.

Dá uma de teólogo ao recordar a concepção de São Tomás de Aquino segundo o qual, no que se refere à prática, a misericórdia é a maior das virtudes “porque cabe-lhe derramar-se para os outros e mais ainda socorrê-los em  suas debilidades”.

Cheio de misericórdia, face aos riscos da epidemia da zica abre espaço para o uso de anticoncepcionais. Trata-se de salvar vidas: “evitar a gravidez não é um mal absoluto”, disse em sua visita ao México. Durante a pandemia do Covid-19 fez apelos contínuos à solidariedade e ao cuidado, especialmente às crianças e aos anciãos. Gritantes foram seus apelos à paz no conflito  bélico Rússia e Ucrânia. Chegou a dizer: “Senhor detenha o braço de Caim. Uma vez detido, cuide dele, pois é nosso irmão”.Eis uma atitude humanitária e misericordiosa.

Aos novos cardeais diz com todas as palavras: “A Igreja não condena para sempre. Deus é um mistério de inclusão e de comunhão, jamais de exclusão. A misericórdia é sempre triunfante. Jamais pode perder um filho ou filha que criou com amor (cf. Sab 11,24).

Isso significa que temos que interpretar as referências ao inferno na Bíblia, não fundamentalisticamente, mas pedagogicamente: como uma forma de nos levar a fazer o bem. Lógico, não se entra de qualquer jeito no Reino dos céus. As pessoas passarão pela clínica purificadora de Deus até irromperem, purificadas, para dentro da eternidade bem-aventurada.

Tal mensagem é verdadeiramente libertadora. Ela confirma sua  exortação apostólica “A alegria do Evangelho”. Tal alegria é oferecida a todos, também aos não cristãos, porque é um caminho de humanização e de libertação.

Leonardo Boff é teólogo, presidente de honra do CDDH de Petrópolis, e escreveu Habitar a Terra:qual é o caminho para a fraternidade universal? Vozes 2022; O doloroso parto da mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes 2021.

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