A questão militar (ainda) não resolvida
O Brasil republicano trouxe consigo o mau hábito de conviver com questões não resolvidas que perduram por décadas. Foi assim com a reforma trabalhista, a inflação elevada, que durou mais de 30 anos, o descaso com a educação pública de qualidade, ainda por resolver, e a tributária, que, só agora, aos trancos e barrancos, e correndo risco de boicote, está dando o ar de sua graça. É o deixa-ficar-para-ver-como-fica. Mas, a principal delas, o papel dos militares numa democracia, já é mais que centenária. E ainda não resolvida.
É de fato surpreendente a incapacidade republicana de resolver os problemas a tempo e a hora, vício que responde, nas últimas décadas, pela marcha lenta do crescimento da renda real per capita do país. E não há mistério algum nessa lerdeza. Trata-se apenas de esperar pelo milagre, que não vai acontecer, de crescer com níveis muito baixos de investimento. E, obviamente, pela falta de coragem de cortar gastos públicos e seus desperdícios.
Para minha surpresa, foi publicado um artigo do editor executivo do Globo, em 24.8.2023, Paulo Celso Pereira, intitulado “A bola no chão”, que traz uma inserção em negrito que traduz o espírito do texto: “Antipunitivistas estarrecidos com a prisão de Lula depois da condenação em duas instâncias querem Bolsonaro na cadeia logo”. Em outras palavras, esqueceram a roubalheira bilionária do PT, sob a responsabilidade de Lula, e exigem punição exemplar de Bolsonaro pelas joias recebidas quando presidente e o que teria sido a tentativa de golpe em que estaria envolvido.
Três dias atrás, em 21.8.2023, O Globo publicou matéria intitulada “Confiança em militares recua e queda é mais aguda entre os bolsonaristas”. E o lead da matéria, logo abaixo, nos informa: “Segundo pesquisa, 64% declararam desconfiança nas Forças Armadas, salto de dez pontos desde dezembro”. Foram os resultados mais recentes da série Genial/Quaest. O percentual dos que “confiam muito” caiu de 43 para 33%. E os que “confiam pouco” (vale dizer, desconfiam muito) somados aos “não confiam” subiram de 54 para 64%.
O Globo omitiu os resultados, mas a pesquisa incluiu também o grau de confiança da população nos políticos, partidos, STF, judiciário, câmara federal, senado, etc, em suma, nos poderes constituídos. Nos levantamentos anteriores, havia elevada desconfiança neles de brasileiras e brasileiros. E provavelmente tiveram uma piora como aconteceu com os militares.
O quadro acima nos permite evidenciar as falhas institucionais do Patropi, que vêm desde o golpe militar de 1889. A questão do golpismo é mais que secular. A rigor, a sociedade civil nunca teve uma conversa franca com nossos militares para lhes dizer que somos nós, civis, que lhes pagamos o soldo. Portanto, temos o direito definir que tipo de militar queremos. Nessa direção sensata, cai como uma luva o artigo 147 da constituição de 1824, que rezava: “A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”. Simples e objetivo assim.
É difícil encontrar quem discorde, ainda hoje, dessa visão que prevenia o golpismo tão desprezado por Caxias. Os políticos do Império tinham pleno conhecimento do que ocorria nos países nossos vizinhos em matéria de golpes e intervenções militares desde o início do século XIX. E se horrorizavam que algo semelhante acontecesse aqui. E por isso controlavam com eficácia os orçamentos militares com as pastas da marinha e da guerra normalmente ocupadas por civis, como é a tradição americana desde 1776 e nossa até 1889.
A grande mídia vem encarando Bolsonaro como se fosse o grande problema nacional. Na verdade, é consequência de uma infeliz tradição da república de conviver com a presença militar na política como se fosse algo normal. Ao longo da História, essa presença, desde os tempos da Roma imperial e na própria história da América Latina, causou muito mais danos do que os parcos benefícios que teria propiciado. É a busca de dar ordem unida à sociedade civil.
Os acampamentos de pessoas junto aos quartéis demandando a intervenção militar para evitar a posse de Lula tem um lado humilhante. Evidenciam nossa pobreza político-institucional ao não dispormos de um quarto poder moderador independente para dar conta de situações como essa. Num regime parlamentarista, o fato de o partido majoritário não ser o PT, e sim o PL, teria impedido a ascensão de Lula como chefe de governo. Não só isso. O Chefe de Estado poderia ter atuado para impedir a hipertrofia do Judiciário sobre os demais poderes. Inclusive evitando a violação de princípios constitucionais como ocorreu com as decisões inaceitáveis do ministro Alexandre de Moraes.
Nossa preocupação com a democracia de baixo para cima deixou de ocorrer com o fim do poder moderador, usado sempre para coibir os desmandos do andar de cima. Ou seja, de ser o bastião de defesa da população em seus justos anseios, como a abolição da escravidão, num processo paulatino, que nos evitou entrar numa guerra civil. E impedindo o reino das oligarquias, como nos assevera o historiador Sergio Buarque de Hollanda ao afirmar que o Brasil do mando dos fazendeiros nasceu com a república. Não foi assim no Império.
A recusa dos militares em participar de mais um golpe, mesmo que para livrar o país de outro tipo de golpe que ressuscitou Lula politicamente, pode ser visto sob outra ótica. O apoio a Bolsonaro no exército nunca foi amplo, geral e irrestrito. O vídeo gravado pelo ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello, atribui ao órgão a façanha institucional de permitir a candidatura de Lula antes de um veredito final sobre as acusações comprovadas de que foi alvo. Afinal, os desfalques bilionários comprovados pela devolução de bilhões de reais ao Tesouro Nacional dirimem quaisquer dúvidas a esse respeito.
Este exercício de História alternativa, que atende aos requisitos da historiadora Barbara Tuchman, revela nossa marcha da insensatez.
**“Dois Minutos com Gastão Reis: História do Brasil mal contada”.