A relativização da hipocrisia
Quando vi tanta gente se sentindo herói no domingo passado, lembrei o “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa. Na década de oitenta, não me cansava de ouvir versos desse poema na voz de Arrigo Barnabé. Colocava, na vitrola, o vinil da trilha sonora do filme “Cidade Oculta” e cantava junto a “Balada do Ratão”: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido campões em tudo.”
Dessa trilha sonora, a música “Pregador Maldito” de Paulo Barnabé foi vetada pela Censura Federal. Foi proibida a radioteledifusão e a execução pública. Pelo “voto manada”, tão falado no domingo, lembrei-me dela; pois na letra, há o verso: “Você não tem escolha, junte-se a nós, não há escolha. Seu bolha”
Desfilaram, em rede nacional, 511 deputados que tiveram seus dez segundos no foco das atenções do país, durante a votação do impeachment para o afastamento da presidenta. Ouvimos frases que colocaram em dúvida a seriedade da política exercida pelos representantes do povo brasileiro. Eis algumas:
“Por você, mamãe, meu voto é sim”; “pelo meu neto …, que nasceu há dez dias, sim”; “em nome da minha mãezinha, voto, sim”; “pela minha esposa…, eu voto sim”; “canalhas, canalhas, canalhas. Pelos quilombolas e povos indígenas, eu voto não”; “eu sou contra esse golpe moderno, bando de covardes”; “trocar seis por meia dúzia não resolve”. (Proferiram também frases impublicáveis).
E, no calor dessa votação, uma deputada exaltou o marido como exemplo de integridade na gestão de bens públicos. No dia seguinte, ele foi preso pela Polícia Federal e terá que responder pelos crimes de falsidade ideológica, dispensa indevida de licitação pública, estelionato, prevaricação e peculato.
Confesso que não tive paciência para ouvir todas as declarações de voto. Havia momentos que eu ficava com vergonha: como alguém tem a coragem de dizer isso, de se apresentar dessa forma?!
Diante da relativização da hipocrisia, perguntava-me: – esses são os políticos que elegemos?! Cusparada na cara, apologia à tortura, ofensas morais, aludiram até o dito cujo que exala enxofre. E usaram o nome de Deus em vão! “Que cenas deprimentes!” O País mergulhado em corrupção. E ali só havia inocentes e honestos?
Caro leitor, a poesia é minha válvula de escape. Nessas horas, mergulho nos livros em busca de uma resposta: – onde está o homem humano que assume os seus atos? Que pensa no próximo? Que compartilha o seu pão com quem precisa? Que busca unir e não dividir? Que tira primeiro a trava do próprio olho?…
Há sempre alguém que quer levar à forca o outro pelo mesmo crime que já cometeu, mas encontra desculpas e perdão para si. Mas deseja apedrejar o outro com a toga da honestidade. Por isso que os versos de Fernando Pessoa ainda soam na minha cabeça: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo/ Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”
Ouço críticas por recorrer aos versos para dizer o que penso. Mas a Poesia tem essa função: traduzir a vida. E nela, procuro encontrar alguma palavra que possa explicar a natureza humana.
“Arre, estou farto de semideuses!/ Onde é que há gente no mundo?” – Pessoa, as pessoas ainda não se entendem…
“A vida é breve, a alma é vasta”. Esta é vendida por tão pouco! O vil metal atende à vaidade e a ganância. A alma, Pessoa, acho que virou mercadoria barata. Carlos Drummond de Andrade tem razão: “Os homens não melhoram/ e matam-se como percevejos.”