A República da Casa Verde

24/03/2019 07:59

Por acaso, você se lembra do Simão Bacamarte, aquele que dizia que reunia em si a teoria e a prática, que “se entregou ao estudo e à cura de si mesmo”, por isso se trancou sozinho na Casa Verde, asilo que criara em Itaguaí para o estudo da loucura?

Acabo de saber que ele se deu um habeas corpus, saiu do asilo e mudou-se de Itaguaí, mas não perdeu a obsessão, continuou entregue, de corpo e alma, aos estudos da Ciência. E, de mala e cuia, partiu para a República dos Estados Unidos da Bruzundanga, que “tinha, como todas as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curtos.” Esse país, “no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria”.

Foi nessa República, descrita por Lima Barreto, que o alienista retomou o projeto de estudo sobre a loucura nas mais diversas manifestações. Só que, mais uma vez, esse dedicado médico deparou-se com patologias que desafiam a lógica: havia carnaval sobre o caos. O trágico e o cômico eram faces de um riso que nem o Sargento de Milícias, nem o Sargento Getúlio, nem o Coronel, nem o Lobisomem entendiam. E, além de tudo, desconheciam a diferença entre canibalismo e antropofagia.

Na tentativa de entender o comportamento do povo de Bruzundanga, Bacamarte debruçou-se sobre o Humanitismo, tese criada pelo filósofo Joaquim Borba dos Santos, mais conhecido como Quincas Borba, na qual as batatas devem ser servidas aos vencedores. Mas, no entanto, ele esclarece que “não há vinho que embriague como a verdade”.

Vale lembrar que o defunto autor Brás Cubas, amigo do Quincas, após passar para o outro lado do mistério, vangloriava-se por não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

A verdade é que o alienista não esperava encontrar tantos alienados, que pareciam alienígenas. Ficou pasmado, quando constatou o surgimento de um caso excêntrico, mas que provocou questionamentos e reflexões: a autoproclamação.

Ele encontrou o Macunaíma com faixa no peito, pois havia autoproclamado presidente. E, como se não bastasse, “dandou pra ganhar vintém”. Foi para a passarela do samba em pleno carnaval. Pegou um cetro, colocou uma coroa na cabeça e autoproclamou Rei Momo e exigiu do prefeito a chave da cidade.

Mas só um fato levou Simão Bacamarte a não desistir de entender o povo de Bruzundanga: ele não encontrou rastro de preguiça no povo do carnaval. Todos pulavam, cantavam alegre-mente, varavam a noite até o dia clarear, saracoteavam com pouca roupa, como nas origens, sacodiam a poeira e as cinzas. A dificuldade era dar a volta por cima, porque não estavam de mãos dadas, por isso o alienista passou a gritar:

— Respeitável público, respeitai-vos! Uni-vos uns aos outros! Cuidado com a lona, querem transformar essa república em circo! – Repetia essa frase como quem prega no deserto.

E foi assim, falando para o nada, que o professor de melancolia, que não gostava do alfinete, mas já tinha “servido de agulha a muita linha ordinária” encontrou o médico alienista, Criador da Casa Verde, que, após desfilar na passarela do samba, sair atrás de blocos, bloquinhos e trios elétricos, ouviu uma voz solitária, longínqua:

— Agora, nem saúde, nem saúva – era o triste Policarpo Quaresma em resignação pessimista, depois do rompimento das barragens.


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