A riqueza visual de um diretor em ‘Os Olhos de Orson Welles’
Depois de tudo que já foi escrito, visto, dito e filmado sobre o autor de Cidadão Kane, surge uma novidade. Em Os Olhos de Orson Welles (disponível gratuitamente na plataforma do Sesc Cinema), o documentarista Mark Cousins vale-se de uma série de desenhos e pinturas deixada por Welles para estudar a sensibilidade visual do cineasta e sua repercussão na obra cinematográfica. Lembra, também, a muitas vezes esquecida vertente social do diretor. A narração, do próprio Cousins, se faz através de uma carta fictícia endereçada a Welles, morto em 1985, aos 70 anos.
Cousins é conhecido por seus documentários sobre cinema, feitos com estilo muito pessoal e sempre narrados por ele próprio. Sua voz é muito particular e reconhecível. Expressa um amor verdadeiro pelo cinema. No caso de Os Olhos de Orson Welles, o recurso de uma “carta aberta”, lida para o espectador, empresta uma vivacidade particular à narrativa. Torna Welles alguém contemporâneo e familiar, muito próximo de nós.
Mark Cousins dispõe de um trunfo poderoso que fundamenta esse projeto. Uma das filhas de Welles – Beatrice – lhe confiou uma verdadeira preciosidade, uma caixa contendo desenhos do pai. Obras poucas vezes vistas, ou então inéditas. Welles era um desenhista compulsivo, que deixava seus traços sobre qualquer pedaço de papel que estivesse à mão. Por exemplo, entrava num bar, observava as pessoas em volta e, em poucos traços, esboçava os perfis das que julgava mais expressivas. Assim também fazia ao planejar seus filmes. Pensava-os com lápis na mão.
Esse tesouro abre caminho para Cousins tentar desvendar a influência das artes pictóricas na composição visual das obras cinematográficas de Welles. De forma curiosa, mas possivelmente intencional, o documentário vem se inserir numa discussão que retorna de vez em quando: o verdadeiro “autor” de um filme é aquele que escreve o roteiro ou o que o define na filmagem?
BASTIDORES
Quem acompanha o debate cinematográfico por certo reconheceu a polêmica sobre a autoria de Cidadão Kane, o clássico de Welles considerado, durante décadas, o maior filme da história do cinema. A controvérsia foi desencadeada pela crítica Pauline Kael que, em seu ensaio Criando Kane (Raising Kane, 1971), aponta o roteirista Herman Mankiewicz como o verdadeiro autor de Cidadão Kane. Welles teria simplesmente “ilustrado” um roteiro excepcionalmente original e bem construído.
A polêmica, adormecida há décadas, ressurgiu com o recente lançamento de Mank (2020), filme de David Fincher (disponível na Netflix), que defende mais ou menos a tese de Pauline Kael.
Através dos desenhos de Welles, cotejados com trechos de seus filmes, Cousins entra nessa polêmica sem propriamente nomeá-la, o que às vezes é a melhor tática para debater ideias sem criar inimigos ou resistências. Simplesmente demonstra como a força de um artista como Welles se baseia em seu olhar original sobre o mundo.
E “olhar”, aqui, deve ser entendido tanto no sentido metafórico como literal. Forma de ver e de compreender. Por isso, é tão importante observar como o desenhista compulsivo punha no papel as cenas que inspiraram obras como o próprio Cidadão Kane, mas também Soberba, A Marca da Maldade, Grilhões de Passado, O Processo, Falstaff, Dom Quixote e outras, tão visualmente fortes como originais. Em um dos seus livros (A História do Cinema, Martins Fontes, 2013), Cousins diz que Welles gostava de “brincar com o espaço visual como um pintor renascentista italiano”.
Não basta o roteiro. É preciso transformar palavras em cenas, corpos e falas; dar-lhes status visual, movimento, corte, profundidade de campo, som, etc. Ou seja, transformar palavras e ideias em imagens em movimento. Cinema não é literatura nem teatro nem pintura, embora dialogue com todos. É uma arte onívora. Entre o roteiro de Mankiewicz e a fotografia de Gregg Toland, deve haver uma inteligência visual que invente e coordene o conjunto de modo a redundar numa obra-prima como Cidadão Kane.
O filme de Mark Cousins ilumina outro aspecto, muitas vezes negligenciado na biografia de Welles, que poderíamos chamar de comprometimento político. Como ele se debruçou quase sempre sobre figuras de poder (Kane, Macbeth, Mr. Arkadin, etc.), esquecemos das raízes sociais que alimentaram seu trabalho desde jovem. Nesse ponto, o recurso ao contexto em que Welles começou a trabalhar vale ouro.
No quadro do New Deal rooseveltiano, o jovem Orson Welles dirigiu, no Teatro Lafayette, no Harlem, o antológico Voodoo Macbeth, versão da peça de Shakespeare com elenco inteiramente negro. Com o patrocínio do Federal Theatre Project, Welles montou a ópera esquerdista de Marc Blitzstein, The Cradle Will Rock (O Berço Vai Balançar). Na véspera da estreia, em 1937, o governo Roosevelt recuou e retirou o patrocínio.
CARTA BRANCA
Naquela altura, Welles já se interessava pelo cinema. Tinha 25 anos e era uma celebridade nacional. A RKO deu-lhe carta branca para sua estreia como cineasta e autonomia no corte final da obra, privilégio raro em Hollywood. Para se preparar para dirigir, consta que Welles assistiu umas 30 vezes a No Tempo das Diligências, de John Ford. Veio então Cidadão Kane, e o resto é História.
O interessante no documentário de Mark Cousins é vermos por ângulos novos, ou pouco explorados, esse personagem já muito estudado e badalado. Welles e sua obra ressurgem renovados dessa revisão crítica. A carta em que Cousins se dirige a ele mostra igualmente essa preocupação em tornar nosso contemporâneo esse ícone do cinema de autor. “Fala” com ele enquanto passa diante da Trump Tower, em Nova York, um monstrengo de 220 metros de altura. E Donald Trump não seria um personagem perfeito para Welles, depois de o magnata das comunicações William Randolph Hearst ter servido de modelo para Charles Foster Kane?
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.