A (suposta) burrice portuguesa e a nossa

20/02/2022 00:09
Por Gastão Reis

(Meus sentimentos às famílias enlutadas e aos desabrigados de nossa cidade e meus parabéns à mobilização de todos. Um abraço na forma de parênteses.)

Vamos ao artigo. Roberto Campos tem uma frase famosa e muito dura sobre o Patropi: “A burrice no Brasil tem um passado ilustre e um futuro promissor”. Apoiador como foi da monarquia parlamentar no plebiscito de 1993, poderia ter substituído a palavra Brasil por República, com o que teria sido mais fiel aos fatos históricos que, sem dúvida, comprovariam sua assertiva.

Vamos, primeiro, abordar a suposta burrice portuguesa e depois a nossa.

Nas décadas de 1950 e 1960, dos tempos de minha juventude, piadas sobre a burrice portuguesa eram muito comuns e degustadas. Talvez um resíduo tardio da relação entre colonizado e colonizador, situação histórica que, no caso brasileiro, também é mal contada. Eu e meus colegas daquela época ríamos a bandeiras despregadas, uma expressão fora de moda, mas ilustrativa do efeito do riso solto. (Foi usada por um conhecido nosso num bate-papo em que também estava presente meu excelente professor de História, Gerardo Bri-to Raposo da Câmara. Foi a única vez que a ouvi, surpreso, numa conversa.)

Somente muitos anos depois, eu me dei conta da armadilha mental em que havíamos caído em relação à nossa própria autoestima nacional. Afinal, os próprios descendentes de portugueses, e não apenas os de outras etnias que povoaram o Brasil, estavam no barco da avacalhação da inteligência portuguesa. Como maioria, estávamos a confirmar nossa burrice nacional. Obviamente, sem nos darmos conta dessa desconfortável resultante. Cientes dela, certamente a repudiaríamos com indignação.

Passemos agora da piada de português para a de brasileiro. Em Portugal, prosperou a piada de brasileiro em que os portugueses zombam de nossa inteligência. Pode ser um simples revide. A agravante é que eles também correm o risco inconsciente de o tiro sair ela culatra em relação à inteligência que teriam passado adiante. Afinal, filho de peixe, peixinho é.

E aqui entramos numa seara controvertida sobre raça e inteligência. A despeito de muitas pesquisas que buscam comprovar através de testes de QI a inferioridade do negro em relação ao branco, hoje a tendência é ir na direção de fatores ambientais e culturais como predominantes. Houve até o caso de um pesquisador americano, Cal Brigham, que, após estudos mais detalhados, repudiou seus próprios argumentos favoráveis à superioridade dos brancos.

Talvez a melhor maneira de encarar essa questão seja partir de uma visão histórica de longuíssimo prazo na linha da história alternativa proposta por Barbara Tuchman, famosa por seu livro “A Marcha da Insensatez – De Troia ao Vietnã”. Ela argumenta que quando, em determinado momento histórico, existem duas alternativas cristalinas à disposição dos atores políticos, e eles (ou ele) escolhe(m) a pior, trata-se de um momento de burrice triunfante.

Indo um pouco mais alto nesse voo de história alternativa, imaginemos que, num passe de mágica, mil anos antes de Cristo (A.C.), um faraó egípcio pudesse tomar um helicóptero e sobrevoar o norte da Europa. Ele veria gente de pele muito branca, com cabelo louro e olhos azuis. Mas iletrada, e vivendo em estágio tribal primitivo, situação muito diferente do apogeu do Egito e suas monumentais pirâmides daqueles tempos. Ele próprio era visto como um Deus vivo. Pergunta: a despeito de seus cabelos pretos e pele morena, passaria pela cabeça do faraó ser ele inferior àqueles brancos europeus? Jamais!

O parágrafo anterior nos abre uma perspectiva diferente em relação a povos não-europeus capazes de realizações incríveis, e que estavam à frente das conquistas intelectuais e técnicas da Humanidade em sua época. Podemos pensar nas milenares civilizações chinesa e japonesa. Ou seja, as realizações de povos brancos nem sempre esteve na dianteira, sem desmerecer as conquis-tas intelectuais e técnicas dos povos europeus, dentre eles os portugueses. Novamente, uma pergunta: em que nível estaria a autoestima portuguesa nos séculos XV e XVI, em que eram os senhores dos mares? Elevadíssimo!

E não estou exagerando. Tanto assim o era que, no século XVI, a Inglaterra contratou um capitão português de mapear as costas do Canadá. Dá bem a medida do avanço técnico de Portugal em matéria de navegação, que muito se beneficiou da Escola de Sagres. Alguns dizem que nunca existiu, mas houve por parte do engenhoso Infante Dom Henrique a capacidade de reunir em terras lusitanas as melhores mentes de então para explorar os mares. (Exemplo correlato: no Império, todas as leis abolicionistas foram passadas por gabinetes conservadores, o que desmonta certas narrativas da esquerda.)

E do ponto de vista político-institucional, será que a herança luso-afro-indígena foi tão medíocre como querem fazer crer alguns historiadores e muita gente boa que aposta no nosso vício de origem? A resposta é um categórico não, como busco comprovar em meu terceiro livro a sair: “História da Autoestima Nacional – Uma investigação sobre monarquia, república e preservação do interesse público”. É assustador que no Quadro Comparativo das Instituições do Império e da República através de 12 indicadores de qualidade político-institucional, o Império conseguisse satisfazer mais de 80% deles e a república, ainda hoje, tenha dificuldade de atingir 20%!

Foi justamente o distanciamento progressivo da herança institucional recebida, que nos mergulhou no pesadelo em que nos encontramos hoje. Valores atemporais como liberdade de imprensa, preservação do interesse público, controle efetivo dos representantes por seus representados (voto distrital puro), respeito pelo dinheiro público, regime parlamentarista baseado na confiança da população no governo como pilar das instituições – tudo isso foi para a lata do lixo. Na verdade, os portugueses foram bem mais fiéis à herança política que nos deixaram. Nossa burrice institucional republicana, iniciada em 1889, com tantos desvios de conduta, não poderia mesmo dar certo.

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