Antônio Araújo fala sobre Milícias em versão de ‘Romeu e Julieta’

15/04/2022 07:31
Por João Luiz Sampaio, especial para o Estadão / Estadão

O teatro de Shakespeare inspirou diversos compositores ao longo do século 19. Apenas de Romeu e Julieta, são cerca de 20 versões musicais. Um dos autores que se interessaram em levar a história do casal de Verona para a ópera foi Vincenzo Bellini. Ao fazê-lo, porém, não usou o dramaturgo inglês como fonte e, sim, novelas italianas anteriores à sua peça. Batizou sua obra de Os Capuletos e os Montéquios. E isso, diz Antônio Araújo, que dirige a partir de hoje uma nova produção da ópera no Teatro São Pedro, não é apenas um detalhe. Na verdade, faz toda a diferença.

“Ao contrário do que acontece no texto de Shakespeare, em que o cômico e o trágico se alternam, aqui a morte é onipresente. A ópera de Bellini é quase uma jornada noite adentro das personagens”, explica o diretor. “A história começa no raiar do dia e termina à noite. E não é por acaso que a cena final é a do cemitério. Nela, ao contrário de Shakespeare, não há algum entendimento entre as famílias. A versão de Bellini é bastante sombria.”

Sombrios são também os nossos tempos. E é dessa relação entre o passado e o presente que nasceu o conceito que Araújo estabeleceu para a montagem, que terá direção musical do maestro Alessandro Sangiorgi. “Como encenador, preciso de uma razão para montar uma ópera ou uma peça de teatro. Qualquer um pode ler o texto e imaginar a história, ou ouvir gravações da ópera. Então, qual o sentido de levá-la ao palco? Para mim, é justamente essa possibilidade de dialogar com o que vivemos.”

CIDADE

Essa não é a primeira vez que Antônio Araújo dirige uma ópera. Na Central Técnica de Produção do Teatro Municipal, localizada no Canindé, e nas obras do então incompleto complexo cultural da Praça das Artes, respectivamente, ele assinou produções de Dido e Enéas, de Purcell, e Orfeu e Eurídice, de Gluck.

As duas montagens dialogavam proximamente com a essência do trabalho fora do palco italiano desenvolvido pelo Teatro da Vertigem, grupo do qual foi um dos fundadores nos anos 1990, responsável, entre outras, por produções premiadas de peças como Apocalipse 1,11, que ocupou o antigo Presídio do Hipódromo, em São Paulo; Livro de Jó, encenado no Hospital Humberto Primo; e BR-3, ambientado nas águas do Rio Tietê.

“Faz realmente muito tempo que não dirijo dentro do teatro, no palco italiano”, ele afirma. Mas isso não significa, acrescenta, um distanciamento da questão urbana ou social – para ele, no momento em que um teatro o convida para dirigir um espetáculo, está naturalmente interessado nesse tipo de ponto de vista, nesse “tensionamento entre o teatro e a cidade”.

“E, na versão do Bellini, eu acho muito interessante que a ópera não se chame Romeu e Julieta, mas, sim, Capuletos e Montéquios. Há um aspecto subjetivo entre os personagens, que exploramos bastante, é claro. Mas esse aspecto se faz presente em um contexto. E, com esse nome, a história se abre para um ambiente macro, coletivo. Ela nos leva para a dimensão da polis, da cidade, daquilo que é coletivo.”

O diretor, assim, traz a história para os dias de hoje. Capuletos e Montéquios são transformados em grupos de milicianos e traficantes. “Esse pensamento miliciano, essa ligação com as armas, com o desejo de se armar, tudo isso me sugere uma política de morte que achei muito interessante abordar no espetáculo”, explica o diretor, que teve diversos encontros, na formatação do projeto, com o jornalista e sociólogo Bruno Paes Manso, autor do livro A República das Milícias (Editora Todavia).

A paisagem urbana se faz presente nos cenários e figurinos, construídos a partir de outdoors destruídos, materiais rasgados e pichações. “Não buscamos realismo nos cenários ou nos figurinos, apenas a sugestão, elementos que possam remeter ao universo urbano da cidade.”

VISÃO FEMININA

Outros temas conectados a importantes questões contemporâneas também se fazem presentes na produção. “Algo que chamou muito a minha atenção é a ausência de figuras femininas. Na ópera, não aparecem a mãe de Julieta, por exemplo, ou a Ama, que em Shakespeare será uma das personagens mais interessantes. Há apenas Julieta, essa mulher cercada de todos os lados por homens que a tratam como um objeto de troca. O próprio coro composto por Bellini é formado só de vozes masculinas.”

Bellini escreveu o papel de Romeu para uma mezzo-soprano – prática comum quando se queria caracterizar um personagem jovem, que soaria mais velho se fosse utilizada uma voz masculina (no Teatro São Pedro, ele será vivido por Denise de Freitas, enquanto Carla Cottini canta Julieta).

O diretor também formou um coro apenas de mulheres. “É um coro de atrizes que chamei para compor o trabalho. Ele é composto de mulheres cis, trans, negras. Não quis obviamente mexer ou alterar o texto, o original. Mas me pareceu importante ter poucas e breves intervenções desse coro, fazendo um contraponto feminino a esse universo bélico e masculinizado.”

Os Capuletos e os Montéquios

Teatro São Pedro. Rua Barra Funda, 171. Dias 15, 17, 20, 22, 24, 27,

29 de abril e 1º de maio.

4ª e 6ª, às 20h; dom., às 17h.

R$ 30 a R$ 80

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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