Antonio Fagundes revela a complexidade de d. João VI
Esqueça o homem indolente, influenciável e glutão, que vivia com um pedaço de frango no bolso, apresentado no filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati. Também não leve em consideração a hesitante figura que aparece na minissérie global O Quinto dos Infernos (2002). “Quero agora apresentar o meu d. João VI, não um homem boçal ou fujão, mas um personagem trágico, obrigado a tomar decisões para as quais não estava preparado, enquanto o mundo explodia à sua volta”, observa o ator Antonio Fagundes, que vai viver o monarca português (1767-1826) na série sobre a Independência do Brasil que o diretor Luiz Fernando Carvalho prepara para a TV Cultura.
Ainda sem título, o trabalho será apresentado pela emissora em setembro, durante os festejos do bicentenário da proclamação da Independência. Para isso, Carvalho recebeu carta-branca para criar uma reflexão sobre um momento histórico marcado por uma sucessão de eventos trágicos. Assim, o diretor não vai limitar a ação apenas ao ano de 1822, mas ampliando o período, desde a chegada da família real ao País, em 1808, até a morte de d. Pedro I, em 1834.
Mulheres
Carvalho pretende apresentar o avesso da História oficial, desde questionando a superioridade da cultura branca até ressaltando a importância das mulheres e escravos naquele momento do Brasil. “Não quero simplesmente trazer o século 19 para os dias de hoje”, justifica. Com isso, ao lado do dramaturgo Luís Alberto de Abreu, o diretor cria um projeto, cujas filmagens começam em janeiro e que vai dar o devido protagonismo a figuras como a imperatriz d. Leopoldina (a ser interpretada pela inglesa Louisa Sexton) além de ressaltar os aspectos trágicos da trajetória de d. Pedro I (Daniel de Oliveira) e o próprio d. João VI.
“Ele não nasceu para ser rei, portanto foi obrigado a passar por grandes provações na vida”, comenta Fagundes ao Estadão, em um galpão na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, onde Carvalho montou seu QG criativo. “Como era o segundo filho, provavelmente viveria à sombra do irmão mais velho, d. José. Mas, com a morte deste e do pai, Pedro III, e com a demência da mãe, d. Maria I, ele foi obrigado a assumir a coroa sem nunca ter sido preparado para essa função.”
Fagundes buscou informações em diversas leituras sobre o monarca, especialmente D. João VI (Companhia das Letras), dos historiadores portugueses Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa, que detalham como a biografia do herdeiro do trono se confundiu com momentos dramáticos da história de Brasil e Portugal.
Pressão
De fato, d. João assumiu o governo em uma época, 1799, de grandes convulsões políticas. De um lado, Portugal sofria a pressão de Napoleão Bonaparte, que combatia qualquer tipo de poder absoluto e vinha conquistando todos os países europeus; de outro, o governo inglês, rival do francês e com o qual os portugueses mantinham uma antiga aliança. “A d. João, portanto, cabia a tarefa de preservar a monarquia. Tentou manter uma neutralidade, mas, pressionado, foi obrigado a transferir a corte para o Brasil”, observa o ator que, em sua caracterização, não pretende utilizar o sotaque português, “apenas uma melodia ao falar”.
Apesar de a vinda ao Rio de Janeiro ter sido prevista com antecedência, d. João decidiu-se tardiamente, o deu à transferência apressada, em 1808, a conotação de fuga. Aqui, porém, transformou a colônia em reino, abrindo os portos e criando, entre outros, a imprensa régia, o Jardim Botânico e até o Corpo de Bombeiros.
Mantinha, porém, difícil relacionamento com a mulher, Carlota Joaquina (a ser interpretada por Ilana Kaplan). “Quando se casaram, ela só tinha 10 anos e d. João teve de esperar cinco anos até consumar o matrimônio. Mas, além de adúltera, ela o desprezava e agiu contra o marido nos últimos anos de vida dele”, conta Fagundes.
“Era um ser de enorme complexidade, amante da música e com esperteza política, pois nunca concentrou mais poder em apenas um ministro”, atesta Carvalho, para quem a tragicidade de d. João é uma perfeita fusão de personagens de Shakespeare (Lear e Hamlet) com os de Molière. “Uma figura teatral pela sua fragilidade e que se resume na frase dita por Fagundes: ‘Fui rei? Sou rei?’.”