Após União, Estados criam emendas sem transparência

16/08/2021 09:00
Por Lorenna Rodrigues e Daniel Weterman / Estadão

A modalidade que ficou conhecida como “emenda cheque em branco”, pela qual parlamentares transferem recursos a prefeitos e governadores sem fiscalização prévia e destinação definida, chegou aos Estados. Ao menos dez unidades da Federação já aprovaram ou têm em tramitação uma emenda constitucional para permitir que deputados estaduais transfiram dinheiro para prefeitos gastarem sem a necessidade de apresentar projeto ou justificativa.

Em Minas Gerais, parlamentares estaduais repassarão a municípios, sem convênio, R$ 1,5 bilhão em recursos pagos pela mineradora Vale após a tragédia de Brumadinho. Em Santa Catarina, enquanto enfrentava um processo de impeachment, o governador Carlos Moisés (PSL) transformou todos os repasses de recursos do Estado para municípios em transferências especiais, modelo menos transparente e de difícil fiscalização.

Levantamento feito pelo Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop) a pedido do Estadão/Broadcast mostra que foram promulgadas neste ano emendas criando “cheques em branco” em São Paulo, Alagoas e Amazonas. Em 2020, propostas semelhantes foram aprovadas em Mato Grosso, Roraima, Santa Catarina e Espírito Santo e, ainda em 2019, em Minas. No Rio Grande do Norte e no Piauí, as mudanças legislativas ainda estão em tramitação.

No governo Jair Bolsonaro, o Congresso aprovou, em 2019, uma Proposta de Emenda à Constituição que uniu situação e oposição e criou o mecanismo das transferências especiais. Antes da PEC, havia apenas transferências com finalidade definida, pela qual o Estado ou a prefeitura tem de apresentar, antes de receber o dinheiro, uma série de documentos, o que inclui objeto do programa, justificativa e plano de trabalho. Todo o processo é fiscalizado por órgãos de controle.

Com as transferências especiais, basta o beneficiário indicar uma conta bancária para receber o dinheiro. Como mostrou o Estadão/Broadcast, essas emendas foram usadas por 66% dos parlamentares federais neste ano, que enviaram recursos inclusive para parentes.

Deputados estaduais e governadores propuseram emendas para incluir nas Constituições estaduais as transferências especiais. Em muitos casos, o texto das propostas é idêntico ao conteúdo da que criou o modelo na Constituição Federal. Em Santa Catarina e em Alagoas, as propostas foram iniciativa dos próprios governadores.

Em São Paulo, as primeiras emendas “cheque em branco” começarão a ser pagas no ano que vem, com recursos da lei orçamentária de 2022. Se o mecanismo estivesse em vigor neste ano, deputados poderiam destinar até R$ 250 milhões a municípios de forma menos transparente. A reportagem apurou que o Tribunal de Contas do Estado deve dar um parecer sobre o tema até outubro, durante a elaboração do Orçamento de 2022.

‘Entraves’

“Tinha muito obstáculo e estamos simplesmente tirando os entraves burocráticos e passando diretamente. Você tem de partir do ponto de vista de que há lisura e honestidade até que se prove o contrário”, afirmou o deputado Campos Machado (Avante), um dos autores da PEC que criou as transferências especiais em São Paulo.

Minas foi além e criou um subtipo dessa modalidade. Depois de incluir na Constituição do Estado a possibilidade de os deputados estaduais usarem transferências especiais para enviar emendas, a Assembleia Legislativa aprovou, em julho, uma PEC para permitir também o envio a municípios, sem a necessidade de convênios e fiscalização, de parte da indenização paga pela Vale ao governo mineiro após a tragédia de Brumadinho.

Contrário à destinação do recurso sem objetivo definido, o governador Romeu Zema (Novo) negociou um projeto de lei que limitou a aplicação do dinheiro a 17 tipos diferentes, que vão de pavimentação até a construção de casas. A lei, no entanto, prevê que os recursos serão transferidos sem a apresentação de “quaisquer documentos ou da celebração de convênio, contrato, termo de parceria, acordo, ajuste ou instrumento congênere entre o Estado e o município”.

“O processo de convênio seria muito moroso e poderia ter uma discricionariedade política. Nossa ideia foi fazer um repasse simultâneo para todos os municípios para evitar algum nível de priorização política”, justificou o relator da PEC, André Quintão (PT). Segundo ele, será a maior transferência de recursos para municípios dos últimos 20 anos. O montante, R$ 1,5 bilhão, representa quase 80% do valor aprovado por todos os deputados federais e senadores em transferências especiais a Estados e municípios neste ano, que foi de R$ 1,9 bilhão.

Em nota, o governo de Minas disse que trabalhou em busca de uma solução “técnica e legal” que viabilizasse o repasse dos recursos com um modelo de prestação de contas. E ressaltou que houve definição de objetos para o uso do dinheiro mesmo sem a formalização de convênios.

Para o diretor do Inop, Renatho Melo, há um “efeito cascata” nos Estados, o que é preocupante por se tratar de um modelo questionado por órgãos de controle e pelo Ministério Público Federal. “As fragilidades são repassadas no efeito cascata, a falta de transparência e controle é elevada e isso desperta um alerta. Estamos caminhando para modelos que nos levam a abismos orçamentários.” Para ele, trata-se também de um facilitador para a corrupção que deve passar por um aprimoramento ou um novo regramento.

SC

Em Santa Catarina, a iniciativa de propor a criação da emenda “cheque em branco” foi do governador Carlos Moisés (PSL), na esteira da articulação para se livrar do impeachment. Ele encaminhou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), no ano passado, e já repassou R$ 421,5 milhões de julho de 2020 até agora. Este ano, após dois afastamentos, Moisés retomou a cadeira e propôs uma nova PEC ampliando o mecanismo para todas as transferências do Estado, incluindo, além das emendas parlamentares, os repasses diretos do Executivo.

A PEC do “fundo a fundo”, como foi chamada a segunda medida, foi aprovada em menos de um mês, contrariando alertas do Ministério Público de Contas do Estado e da Consultoria Legislativa da Assembleia, que se posicionaram contra a proposta. “Em Santa Catarina, aparentemente, isso tem uma justificativa. Dois processos de impeachment e há uma conta que precisa ser paga. Talvez esse mecanismo esteja na conta”, afirmou o procurador Diogo Roberto Ringenberg, do Ministério Público de Contas de Santa Catarina. “É praticamente impossível a fiscalização.”

A mudança concede um tratamento tributário diferenciado aos recursos, transformando-os em receitas não tributárias, o que pode tirar recursos da Saúde e da Educação, que têm gastos mínimos definidos de acordo com a arrecadação de impostos.

O secretário da Casa Civil do Estado, Eron Giordini, disse que o modelo foi proposto para agilizar o repasse dos municípios e negou o uso do mecanismo para comprar apoio político. Ele prometeu editar uma portaria para exigir dos municípios a indicação dos valores e um plano de trabalho detalhando a destinação do recurso no caso da segunda medida. Esse controle, porém, não será aplicado no caso das emendas parlamentares.

“O governador é municipalista e vejo muito mais como um incentivo a essa aproximação com os municípios, através de um processo de desburocratização. Não tem nenhuma relação política com o processo de impeachment, de afastamento ou de agrado ao Parlamento”, afirmou Giordini. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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