Após uso de kit covid, pacientes vão para fila de transplante; ao menos 3 morrem

24/03/2021 10:30
Por Fabiana Cambricoli / Estadão

O uso do chamado kit covid, que reúne medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios, segundo médicos ouvidos pelo Estadão.

Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia.

Números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. O remédio, indicado para tratar sarna e piolho, não teve sua eficácia contra a covid comprovada. Seu uso contra o coronavírus foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo próprio fabricante do produto, a Merck.

O produto, porém, é um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagnóstico de covid e receberam a prescrição do chamado “tratamento precoce”.

Pele amarelada

Quatro deles foram atendidos no Hospital das Clínicas da USP e o outro no HC da Unicamp. “Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos. Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino”, diz Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade. Sem esses dutos, explica ele, substâncias que podem ser tóxicas ficam na circulação sanguínea, favorecendo quadros infecciosos graves. “O nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes está com mais de 40”, conta ele.

D’Albuquerque conta que, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante no HC, dois tiveram doença aguda e morreram antes da operação.

“É uma combinação de altas dosagens com a interação de vários medicamentos. A substância desencadeia um processo em que a célula ataca outros células, levando a fibroses, que causam a destruição dos dutos biliares”, diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.

Os dois especialistas explicam que as biópsias do fígado desses pacientes evidenciam que os casos são de origem medicamentosa e não complicações do próprio coronavírus. “A covid pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos”, diz Ilka.

H., de 57 anos, é um dos pacientes na fila. Ele conta que tinha a saúde perfeita antes da covid e que nunca tomava remédios. “Nem aspirina.” Ele conta que decidiu tomar os remédios do kit covid por causa de estudos preliminares que mostravam algum benefício da droga. “Fiz com acompanhamento médico, mas acho que não imaginavam que isso poderia ocorrer comigo, alguém que não tinha nenhuma doença crônica.”

Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. “Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado remédios do kit.”

O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. “É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia”, diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo.”

Hemorragias e a insuficiência renal

Além dos casos de hepatite medicamentosa associada ao uso de drogas do kit covid, médicos relatam outros efeitos colaterais que vêm aparecendo em pacientes sem doenças crônicas, mas que haviam utilizado os medicamentos.

Médico nefrologista do Hospital das Clínicas da USP, Valmir Crestani Filho relata ter atendido pacientes com hemorragia e insuficiência renal ligadas direta ou indiretamente ao uso de medicamentos ineficazes contra a covid. Em um dos casos, o doente recebeu azitromicina e teve cólicas, diarreia e fortes dores abdominais, efeitos conhecidos do antibiótico.

Ao procurar um serviço de saúde, o homem recebeu omeprazol para o alívio dos sintomas e acabou desenvolvendo um quadro raro de insuficiência renal associada ao medicamento. “O omeprazol é uma medicação boa, tem várias indicações, mas existe uma complicação rara que pode acontecer chamada nefrite intersticial aguda, que é como se fosse uma alergia nos rins”, conta.

O paciente precisou ser internado para fazer algumas sessões de diálise e se recuperou. “Mas foi uma grande dificuldade, não tinha leito. É difícil esse quadro em uma situação de colapso”, afirma.

O outro caso é de um paciente que recebeu prescrição de anticoagulantes como tratamento precoce para a covid e acabou tendo uma hemorragia gástrica. O homem também precisou ser hospitalizado, mas se recuperou. Ele tinha um quadro de úlcera não diagnosticado e a medicação acabou agravando o problema.

“A partir do momento que essas medicações passam a ser usadas por milhões de pessoas, esses efeitos, mesmo que raros, começam a aparecer com mais frequência. Quando a gente prescreve um medicamento é porque os benefícios são maiores que os riscos. Se esses remédios não têm nenhum benefício contra a covid-19, todo efeito colateral foi em vão”, afirma.

O médico Gerson Salvador também atendeu na última semana casos de efeitos colaterais de anticoagulantes. “Era uma paciente de 40 anos com covid confirmada usando dose alta do anticoagulante enoxaparina e outros medicamentos em casa. Veio com piora respiratória e com sangramento de origem pulmonar”, conta.

Ele também relata casos de pacientes que, por estarem tomando as drogas do kit covid e julgarem estar protegidos de um agravamento da doença, demoram muito a procurar um hospital e surgem em estado gravíssimo. “Em um dos últimos plantões, atendi um paciente que estava tomando cloroquina e usando oxigênio em casa. Ele chegou azul. Tive de intubar na hora”, diz. / F.C.

‘Remédio do Bolsonaro’

Confira a seguir o depoimento de C. (ela não quis ser identificada), filha de uma das vítimas do novo coronavírus. “Fui diagnosticada com covid em dezembro e meu pai, como morava comigo, decidiu fazer o teste. Ele fez o PCR no dia 5 na Prevent Senior e foi orientado a esperar o resultado em casa. Mesmo sem sintomas nem teste positivo, ele recebeu o kit covid lá mesmo. Tinha azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide. Ele tomou por cinco dias. Eu sabia que esses remédios não têm eficácia comprovada, mas como meu pai era muito teimoso por questões políticas, nem adiantou eu falar. Ele disse que queria porque era o ‘remédio do Bolsonaro’. O corticoide eu sabia que, se dado na fase inicial, pode até piorar a resposta imune, mas não adiantava falar. No dia 13 de janeiro, ele começou a ter sintomas e fez um novo teste. Esse deu positivo. Ele voltou a tomar os remédios do kit, mas três dias depois piorou e foi internado. Ele nem queria ir ao hospital, achava que estava bem. Acho que esse kit dá uma falsa sensação de segurança. No dia 19, ele teve duas paradas cardíacas e foi intubado. Três dias depois, morreu. A causa foi covid, mas a gente sempre fica pensando se esse monte de remédio pode ter diminuído as chances dele.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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