Arte – Filme discute os limites do mercado
Em ‘O Homem que Vendeu a Sua Pele’, refugiado sírio é aceito depois de permitir que pintura seja feita em suas costas
Recomeçam nesta terça, 5, os debates da parceria Estadão/Cine Petra Belas Artes. E o primeiro será sobre o filme O Homem Que Vendeu sua Pele, de Kaouther Ben-Hania, que concorreu ao Oscar pela Tunísia. O protocolo será o de sempre – ingressos gratuitos liberados a partir das 19 horas e a projeção começa às 20 horas. Ao final, acontecerá o debate entre o crítico Luiz Carlos Merten e o curador João Paulo Quintella.
Yahya Mahayni e Dea Liane formam o casal de protagonistas. Conversam por Zoom com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo: ele, diretamente do Egito; ela, do Líbano.
Na trama, formam o casal separado pelas circunstâncias. Na Síria, Sam/Mahayni vai parar na cadeia por um episódio que pode até parecer banal, mas que o transforma em elemento perigoso para o regime. Ela se casa com o homem indicado por sua família. Vai morar na Bélgica. Ele foge e arranja um emprego no Líbano, e é como conhece ‘Jeffrey’.
Sabe a história de Fausto? O próprio Jeff define-se como um Mefistófeles. É o artista que faz a Sam uma proposta – gravar nas costas dele o passaporte que lhe dará livre circulação na União Europeia. Sam vira uma commodity. Dá expediente em galerias e museus como quadro vivo.
“Essa história se inspira no que ocorreu com Tim Steiner, um tatuador belga que foi transformado em obra de arte por Wim Delvoye. O caso teve repercussão internacional. Foi o ponto de partida para Kaouther. Ela tinha a situação forte, mas precisou criar todo o resto”, conta Mahayni.
O resto é o X da questão. Organizações de defesa de direitos humanos dizem que ele está sendo usado. Acusam-no de manchar a imagem dos sírios. Até os familiares, embora aceitando o dinheiro que ele lhes envia, fazem piadinhas: Jeffrey comprou só as costas ou o traseiro também?
Mahayni foi melhor ator na mostra Orizzonti de Veneza, no ano passado. Conta: “Desde que Hania (a diretora) me mostrou o roteiro, fiquei apaixonado pelo projeto.”
O repórter observa que a história de amor do começo vira política. “Acho que temos uma diferença de percepção. Para mim, mais do que uma declaração política, Hania está falando de humanidade. A arte, no filme, representa poder, dinheiro, e Sam, malgrado sua resistência, é o elo fraco. A partir de certo um momento, tudo o que ele tenta fazer é manter sua dignidade.”
E mais: “Não creio que essa história possa ser reduzida a uma crítica sobre o tratamento que os ocidentais dão aos refugiados. Simpatizo com quem pensa assim, porque a situação deles é trágica, mas me parece reducionismo. O dinheiro não pode valer mais do que a vida humana. Talvez seja uma visão romântica, idealizada, mas creio nisso, e Hania também.”
E Dea: “Minha personagem é bem a cara das mulheres no mundo árabe, onde a tendência é vivermos à sombra dos homens. Hania é mulher e norte-africana. É preciso muita determinação para se tornar uma voz nesse mundo tão restritivo e preconceituoso. Sou atriz de teatro e cinema e sei bem o que é isso. Tenho me engajado em movimentos de liberação das mulheres em sociedades que minimizam nossos direitos.”
O filme tem Monica Bellucci como Soraya, a assistente de Jeffrey. “Na verdade, o filme começou com ela”, explica Mahayni. “Soraya é uma mulher glamourosa, que circula em um meio sofisticado.”
Veste os figurinos criados por Azzedine Alaïa. “Hania pensou alto. Enviou o roteiro para a agente da Monica sem muita esperança de obter resposta, mas ela havia visto e gostado do filme anterior da nossa diretora, e aceitou.”
Levar o filme para o Oscar foi uma experiência e tanto, mas os atores não puderam estar presentes à premiação. “Por conta da pandemia, as restrições este ano foram maiores e tínhamos direito só a duas poltronas. Foram Hania e a produtora.”
Quando conversou com os atores, o repórter ainda não tinha visto o final do filme. Faltavam uns 15 minutos. “Justamente o final tem provocado polêmicas. Muita gente reage mal ao twist do desfecho”, conta Dea.
E Mahayni: “Muita gente chega a dizer que o filme deveria se chamar O Homem Que Vendeu sua Alma.” Para o repórter, poderia ser Os Homens Que Derrotaram o Sistema.”
É o verdadeiro twist. Jeffrey não é o canalha cínico que parece. Toma uma atitude, o comprometimento da arte. Apesar de todo antagonismo, Sam e ele chegam a uma espécie de respeito mútuo. Jeff tem uma frase esclarecedora – “O pior não é fazer parte do sistema, ou ser abusado por ele. O intolerável é ser ignorado”.
A invisibilidade social em discussão. E Dea, para encerrar, afirma: “Você falou da história de amor do começo como se depois ela não importasse mais. Importa, sim. Sem afeto tudo fica mais difícil.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.