Arte para pensar a sociedade e suas figuras

08/10/2021 08:30
Por Guilherme Sobota, especial para o Estadão / Estadão

Quando Paulo Nazareth era criança, e ainda não havia definido o que faria da vida, sua mãe levava para ele brinquedos quebrados e descartados a partir das limpezas urbanas e faxinas que fazia na cidade de Governador Valadares (MG). Eram carrinhos, bonecos e outros materiais que o menino então reconstruía com gravetos, talhando madeira e utilizando outras técnicas – o que seria, ele relembra hoje, sua origem como artista plástico.

Aos 44 anos, Nazareth expõe uma série de trabalhos com destaque na 34ª Bienal de São Paulo, até o dia 5 de dezembro no Pavilhão do Parque do Ibirapuera, com entrada gratuita e exigência do comprovante de vacinação para os frequentadores.

São trabalhos que exploram a condição de ser brasileiro nas últimas décadas, fortemente ligados às origens e à cultura de antepassados do artista – há influência de arte indígena e afro-brasileira -, mas que também estão em constante diálogo com outras geografias, mundo afora.

Deslocamento, comunicação e circulação são temas caros ao artista, vencedor de prêmios como o Masp de Artes Visuais e o Pipa. Não por acaso, seu trabalho já foi exposto ou integra coleções em instituições europeias, norte-americanas e brasileiras, como o Museu de Arte Moderna do Rio e a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

A primeira obra de Nazareth que o visitante da Bienal verá é a série Outdoors, esculturas de madeira revestidas de chapas de alumínio, posicionadas em pontos diversos do Parque do Ibirapuera com medidas variadas, de até 11 metros de altura. São personagens históricos da luta contra as opressões que marcam a história do Brasil, como Aqualtune, Dinalva, João Cândido, Teresa de Benguela e Marielle Franco.

“Nessa obra existe até uma questão linguística, porque o título é o modo brasileiro de se referir a esses grandes ‘anúncios'”, explica o mineiro Paulo Nazareth ao Estadão. “Gosto disso. Existe uma questão própria com o ‘advertising’ (outra palavra de língua inglesa para publicidade). Dá para puxar para o conceito de ‘advertências’, então essas esculturas funcionam para mim como objetos para advertir. Queria mostrar pessoas não só do Brasil, mas do continente americano, porque estamos próximos de lugares na América, mas também distantes de locais dentro do próprio Brasil.”

A grande dimensão das esculturas propõe então uma reflexão sobre nossa relação com assuntos cotidianos (“fiz questão de que a Marielle fosse maior do que o Borba Gato em Santo Amaro”), mas também com o próprio universo. “É um distanciamento para pensar em como nos apequenamos. Talvez a invisibilidade seja pertinente no contexto da pandemia, por exemplo.”

Já em Levante/Amolador de Facas – uma das obras que o visitante confere no hall de entrada da Bienal -, um artista contratado trabalha com uma espécie de bicicleta que funciona como amolador de placas de metal. Com as pontas afiadas, elas acabam formando uma espécie de escultura em construção.

No andar de cima, a faca também aparece. Na obra Levante/A Impressão, em uma “barraquinha” com um varal, outro artista contratado trabalha com impressões de xilogravura (a partir de bases de madeira talhadas por Nazareth) em papel ou nas roupas dos visitantes – o desenho é o de uma faca. As gravuras são numeradas, assinadas e penduradas no varal. Para levar a impressão para casa, o visitante deve oferecer tabaco ou açúcar, numa espécie de escambo em que as moedas são os produtos fortemente conectados à história colonial do País.

“Esse trabalho fala desse lugar de troca e comércio”, reflete o artista. “O varal, na minha construção, remete a esse ato. Essa função da xilogravura, que é muito mais comum no nordeste brasileiro e está presente no cordel (varal e corda), faz uma referência a esse lugar geográfico do Brasil. Que, por outro lado, constitui muito a cidade de São Paulo também. Gosto de pensar essa mão que tira a cidade do desenho e a faz existir no mundo concreto.”

A presença recorrente da faca nas obras não é um acaso. “O que representa a faca hoje: uma contraposição da arma”, diz Nazareth. “No momento em que a campanha por armas está tão acirrada no território brasileiro, a gente pensa na faca. Ela é um utensílio doméstico, e dependendo da mão que a usa pode transformá-la numa arma, mas mesmo assim está num lugar mais humano, mais vivo do que uma arma de fogo. Até um assassinato com faca é algo artesanal, porque existe algo sujo. Na xilogravura, nessa impressão artesanal, de um modo ou de outro, o próprio artista vai sujar as mãos.”

A faca talvez seja a mesma que o jovem Nazareth usava para talhar os brinquedos quebrados que sua mãe levava para casa. “Apesar de ter essa artesania, o mundo das artes era distante para mim. A sina da minha família era trabalhar para outras famílias. Tentei várias coisas, quase fui militar, tentei estudar na Escola de Cinema de Cuba, no teatro universitário. Trabalhei como zelador em um encontro da Alca em BH, quando tive de passar por um teste da Polícia Federal, e fui aprovado para limpar as cagadas dos grandes estadistas. Aí, encontro Mestre Orlando, artista baiano que veio para BH na década de 1970. A história dele com a arte começou quando ele foi trabalhar na restauração de uma senzala em Salvador e viu esculturas talhadas na madeira e pinturas. Isso desperta nele o ser artista. Foi ele quem me apontou o lugar do artista em mim, quando eu lhe disse que talhava os gravetos para fazer brinquedos. Ele falava, ‘artesanato: arte nata’. Começo a estudar com Mestre Orlando, talhar carrancas, madeira e pedra-sabão e continuo com ele até 2001. Foram encontros fundamentais.”

Performance

No dia 13 de novembro, Paulo Nazareth apresenta na Bienal a performance La Fleur de la Peau (À Flor da Pele), de 2019, na qual um saco de farinha de trigo pende do teto e é esfaqueado ritmadamente por dois homens representados como imigrantes. Segundo a Bienal, a obra é uma “alusão à cultura ocidental branca e seu uso do racionalismo como ferramenta de submissão das demais culturas do mundo”. Ainda na Bienal, o artista também expõe a obra Panfletos, um dos eixos da sua plataforma editorial, que imprime panfletos a serem distribuídos gratuitamente com discussões de temas como violência e racismo estrutural.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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