‘As Verdades’, com Lázaro Ramos, lembra filme de Kurosawa
Ator ele nunca deixou de ser. Baiano, formado na escola do Olodum, Lázaro Ramos fez filmes importantes como Madame Satã, Ó Paí Ó e Cidade Baixa, para citar apenas três. A direção já era um projeto para o qual ele se preparava.
É o primeiro a admitir que o sucesso de Medida Provisória foi uma coisa planejada e construída, e mesmo assim o surpreendeu. O filme virou um fenômeno social, bandeira da comunidade negra para a discussão de questões como desigualdade e inserção social – pertencimento. Lázaro está de volta à frente das câmeras em As Verdades. O longa de José Eduardo Belmonte, já em cartaz, tem o ator como o protagonista, o policial Josué.
Você nunca o viu assim em cena. Lázaro cria um personagem meio largado, parece mais gordo. É só uma postura física para a construção da identidade de Josué, ou ele realmente engordou para o papel? “É uma mistura das duas coisas, mas surgiu de forma muito natural, num trabalho integrado de ator e direção. Belmonte tem um método peculiar de direção de elenco. Não é o tradicional trabalho de mesa, mas ele estimula a gente a vestir o personagem, a se sentir confortável na sua pele, mesmo quando a essência da figura é o desconforto. O Josué investiga um assassinato. Interroga os suspeitos, ouve as diferentes versões, as tais verdades. O filme aborda um tema visceral no Brasil de hoje, a violência contra a mulher. E, nesse quesito, o Josué é um omisso.”
VERSÕES
As verdades, a verdade de cada um. Não é a primeira vez que Belmonte pega um projeto andando. O filme Alemão veio do produtor Rodrigo Teixeira, As Verdades tem, nos créditos, a consultoria de roteiro de dois craques, Guel Arraes e George Moura. Alguém já disse que o filme se perde entre o policial e o romance. Depende do olhar. Quem atacou Zecarlos Machado, passando com o carro por cima dele e deixando-o todo estropiado na cama de hospital? A amante? O pistoleiro fissurado na garota, e que inclusive a estupra quando Zecarlos está caído no chão? O filme já nasceu como as verdades, as versões de cada um. Faz lembrar o longa que deu projeção internacional a Akira Kurosawa, em 1950 – Rashomon. O autor, por sinal, é o mesmo, Ryunosuke Akutagawa. O repórter o define como ‘pirandelliano’. E Belmonte: “Gosto dessa ideia do Pirandello a nortear a pesquisa”.
Personagens em busca de um autor. O próprio Pirandello dizia: “A vida se vive, ou se escreve”. O baú de máscaras compõe seu laboratório teatral, como situa Maurício Santana Dias no prefácio de 40 Novelas de Luigi Pirandello, da Companhia das Letras. No filme, o atropelado é Zecarlos e Bianca Bin e Thomas Aquino acusam-se mutuamente. Cada ator tem de defender a sua versão, menos Lázaro. Como investigador, ele está ali para pressionar os integrantes do grupo e fazer a verdade vir à tona. Pouco antes de falar com ele ao telefone, o repórter viu na TV o caso do sujeito em Belo Horizonte que agredia mulheres na rua e depois passava com o carro por cima delas. Um barbarismo.
“A violência contra as mulheres sempre foi um problema no Brasil, mas foi acentuada durante a pandemia. Nesse quadro, ao invés de agir, Josué omite-se”, Lázaro reflete. Thomas Aquino, o ator que fazia Charuto em Bacurau, conta que o matador, Cícero, tem a força física, mas nunca pensou em fazer dele um tipo saradão. “Nunca havia criado nada parecido, essa coisa de interpretar diferentes versões de um mesmo fato e ter de defender todas elas. Qual é a verdade? O Cícero é atraído pela Francisca” – e o repórter o interrompe porque, nesse momento, a propaganda do filme na TV mostra o pistoleiro na feira, a mulher passando por ele, que sente seu perfume e a segue. “É isso, essa atração, mas o cara pode ser um animal, usa sua força, a violência, contra ela.”
Lázaro, de volta. “Foi um filme muito interessante, complexo de fazer. Filmamos tudo em 17 ou 18 dias, e havia essa ambiguidade, nenhuma certeza. Às vezes, no mesmo dia, a gente filmava versões diferentes. Tínhamos de estar espertos.” O roteiro foi uma ferramenta valiosa. Lázaro sabe do que está falando. “Desde adolescente, sempre gostei muito de escrever.” Tornou-se autor infantil, e não apenas. Lançou o Diário de Medida Provisória.
“Nesse caso, o diário nasceu como um guia para mim, que ia registrando o processo, a intenção. A coisa tomou forma e o diário foi incorporado ao desenvolvimento do projeto. O Medida foi feito por uma equipe predominantemente preta. Tornou-se importante para a gente documentar esse processo.”
Ator, vale repetir, ele sempre será. Mas a direção não foi só a aventura do Medida. “Há um ano, saí da Globo e assinei com a Amazon Prime Vídeo. Ingrid Guimarães e eu temos um contrato para fazermos projetos nossos, só o que quisermos. Fiz um musical, que já está filmado. Um Ano Inesquecível – Outono é de quatro diretores. Esse é o ano inesquecível, 2022, a eleição. O Brasil tem de dialogar consigo mesmo, tem de se reencontrar”, espera. Um musical? Pensando bem, esse universo do artifício e do espetáculo tem acompanhado Lázaro desde Madame Satã, o longa de Karim Aïnouz, de 2002. “A série Mister Brau, que fiz na Globo, também tinha tudo a ver com música. A ginga do brasileiro passa pela musicalidade”, ele diz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.