Atiq Rahimi fala de suas inspirações para o romance ‘Os Carregadores de Água’

11/10/2021 08:59
Por Jennifer Queen, especial para o Estadão / Estadão

Era 11 de março de 2001. A mando do Taleban, vinte e cinco prisioneiros instalaram explosivos aos pés de duas estátuas gigantes, então os maiores budas do mundo, na província de Bamiyan, no Afeganistão central. Foram dias e dias até que fossem totalmente destruídos. A data foi escolhida por Atiq Rahimi, escritor franco-afegão vencedor do Prêmio Goncourt, para ambientar seu novo romance, Os Carregadores de Água, lançado agora no Brasil pela Editora Estação Liberdade.

São duas histórias, três, se incluída a da destruição dos budas. A primeira é de Tom, um afegão exilado, bem integrado na sociedade francesa, funcionário de uma empresa de serigrafia têxtil, paramnésico. Ele vive entre Paris e Amsterdã e decidiu largar a mulher e a filha naquela manhã. Já Yûsef, um carregador de água afegão, leva o seu odre para cima e para baixo em Cabul, num inverno seco, em que não neva nem chove e é preciso observar os horários de prece, pois a cidade está ocupada pelos mujahidines.

“Era uma história que queria contar havia algum tempo, sobre como o homem olha para o amor no exílio. Os Taleban eram um pesadelo que tinha acabado mas poderia retornar, por causa da corrupção, da influência paquistanesa no país. Talvez um dia voltássemos a viver como Yûsef, mas é curioso que isso aconteça, vinte anos depois”, disse Rahimi, por telefone.

Nas últimas semanas, o autor ajudou a extrair 260 pessoas do país, entre escritores, poetas, fotógrafos, ativistas, cineastas e jornalistas. “Infelizmente, o Afeganistão é vítima de um jogo político do qual participam países onde não há liberdade: Rússia, China, Paquistão, Qatar, Arábia Saudita. Foram eles que levaram o Taleban ao poder”, completou.

O país – que ele deixou aos 20 anos, primeiro em direção à Índia e, depois, à França – é palco de todos os seus livros. “No Ocidente, a questão é o ‘Ser ou Não Ser’ de Shakespeare. Para nós, é ‘Dizer ou Não Dizer’. Quando cada palavra se torna uma questão de sobrevivência, a língua é principalmente existencial”, contou ele, sentado a uma mesinha do café Les Éditeurs na margem esquerda de Paris, num dia de maio anterior à pandemia do coronavírus. As palavras são centrais para os personagens no seu novo livro.

“Quando você inverte ‘Tom’, o resultado é ‘mot’ (‘palavra’, em francês). Ele tem todas as palavras, e por isso se questiona, se tratando de ‘você'”, afirma. Tudo se duplica: os eventos, por sua paramnésia, a língua, por seu exílio e, então, o próprio Tom, criando com a sua narrativa o campo-contracampo do cinema, que o autor escolheu como tema para a sua tese de mestrado. “Quando a gente se ‘tutoia’ (se trata de você), assumimos um duplo, numa espécie de esquizofrenia. Já Yûsef não sabe nomear aquilo que sente. É um homem primitivo, que pertence às origens, por isso a sua história é narrada como uma fábula.”

Para Tom, é o fim de uma história de amor. Para Yûsef, o princípio. O autor citou ainda Rochefoucauld: “‘Poucos homens ficariam apaixonados se antes não tivessem ouvido falar do amor’. Para dizer eu te amo, é preciso conhecer a literatura amorosa”. Em persa ou em francês? “Meus poemas estão em persa, dessa forma podem permanecer secretos. Mas escrevo romances diretamente em francês. Porque não tenho tempo de traduzir, além de ser muito difícil. Ainda não encontrei minha língua romanesca em minha língua materna. Mas às vezes esqueço em qual língua penso. Sou como Tom nesse sentido: esquecendo em qual língua penso, às vezes esqueço sobre o que penso. Pensamentos e palavras são como dois lados de uma página, se você rasga um lado, também rasga o outro. É como um duplo inseparável”.

Prolífico, Rahimi é também diretor e produtor de cinema, faz calimorfias – desenhos a partir da caligrafia persa -, e escreve libretos. Semanas antes do início da pandemia do coronavírus, em 2020, lançava um filme, Nossa Senhora do Nilo, adaptação do romance homônimo de Scholastique Mukasonga que teve pré-estreia global no Festival de Cinema de Toronto, em 2019, e um livro, O Convidado do Espelho (2020), poema que traça um paralelo entre Afeganistão e Ruanda e foi inspirado pelos meses que passou na África durante as filmagens.

“Os dois terrores, do Afeganistão e da Ruanda, estavam ligados para mim. Quando ligávamos a TV, havia imagens de ambos. Depois de olhar para o meu país, queria saber como era o terror em outro lugar. Não poderia escrever um livro, para isso precisaria viver alguns anos lá, entrar nesse imaginário, então adaptar essa história era a melhor opção”, comenta.

A história se passa em uma escola para meninas em Ruanda, onde há uma cota de 10% para alunas de etnia tutsi. Os conflitos entre as colegas antecipam a tomada de poder hutu e o massacre tutsi que aconteceria anos depois. “As mulheres e as crianças são as primeiras vítimas de um genocídio.” Ou de um regime totalitário. Para o autor, as recentes declarações do Taleban, sobre deixar mulheres irem à escola e trabalharem, é uma estratégia para que eles sejam reconhecidos no poder e então possam colocar em prática a lei islâmica, a sharia, que tira das mulheres qualquer liberdade.

Como escreve em O Convidado do Espelho: “Genocida! É importante nomear o horror, porque senão ele retornará, sob o nome que quiser”. Mas nem tudo precisa ser nomeado, ou mesmo se tornar visível.

“Gosto de uma frase da época do meu mestrado em cinema: ‘A imagem do cinema é assombrada por aqueles que não se encontram lá’. Somos atraídos pelo invisível, principalmente na arte”, completa, antes de dar um gole no café. Além do som clássico do piano, um grupo barulhento se sentou ao nosso lado, apesar dos dois andares quase vazios do café.

Pergunto para ele o que estaria invisível em seu novo romance: “As mulheres. São invisíveis como Deus, por isso têm um poder divino”. As personagens Rina, Nuria, Rospinoza e Shirine aparecem principalmente através das narrativas dos dois homens, mas Shirine, a cunhada de Yûsef, é a única a ter voz. O nome é uma homenagem a uma mulher muito bonita, de etnia hazara, que trabalhava na casa dos seus pais em Cabul quando o autor era bem jovem. Mas poderia ser uma referência à princesa armênia da história de Shirine e Kroshow, que o autor adaptou para libreto para uma ópera que seria lançada em 2020. “Shirine é uma princesa que deseja”, completa.

A agenda para os próximos meses promete ser intensa. Além da ópera Shirine, que deve ser finalmente lançada em 2022, o autor prepara dois espetáculos, sobre O Convidado do Espelho e, outro, de histórias engraçadas. “Chama-se Sous-rire avec Dieu (‘Rir com Deus’). No meu país, temos um ditado: você pode rir de qualquer coisa, mas não com qualquer um. Quero mostrar que, com Deus, pode-se rir de tudo, inclusive Dele mesmo.”

CONFIRA UM TRECHO

“Observando seu estranho estado, o sufi Hafez o convida a tomar um chá em seu escritório. Yûsef, cansado, a barriga vazia, está inclinado a aceitar. Mas, no fundo, gostaria de falar com ele. Falar de Shirine. De seu estado, seu desgosto com tudo, seu silêncio diurno e algazarra noturna.

Depois de ouvir o carregador de água, o sufi fica em silêncio. Então, entre dois goles, diz poder compreendê-la, ele mesmo não quer mais ver nem falar com os outros. ‘Shirine deve conhecer o segredo da fuga de Soleyman’, pensa Yûsef, antes de perguntar ao sufi Hafez o que significa esse versículo do Alcorão com o qual o mulá bate em suas orelhas.

‘Está no capítulo 4, versículo 34’, responde o sufi com uma voz sábia. Ele mergulha um torrão de açúcar no chá antes de levá-lo à boca. Depois de um gole, recita primeiro o versículo em árabe, então o traduz para o persa: ‘Os homens têm autoridade sobre as mulheres, por causa dos favores que Alá lhes concede sobre aquelas, e também devido ao fato de os homens disponibilizarem seus bens. As mulheres virtuosas são obedientes e protegem aquilo que deve ser protegido, na ausência do marido, com a proteção de Alá.'”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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