Ator e diretor de teatro, Ziembinski é retratado em documentário de Joel Pizzini
Definido pela crítica como um diretor-autor de “etnopoemas”, vide 500 Almas (2004), sobre a luta dos povos originários para preservar sua memória, Joel Pizzini é um documentarista que fez da recordação – na luta para resguardar o passado – o tema central de um cinema desenhado majoritariamente no terreno da biografia. Foi de Glauber Rocha (Anabazys) a Ney Matogrosso (Olho Nu), passando por Mário Peixoto, retratado em Mar de Fogo, com o qual disputou o Urso de Ouro da Berlinale, em 2015. Agora é a vez de o teatro pedir passagem em sua obra, a partir de um pilar da invenção cênica, responsável pela montagem de Vestido de Noiva, que marca o início do teatro moderno no País, em 1943: Zbigniew Ziembinski (1908-1978).
Zimba, apelido dado ao ator e encenador polonês (radicado em nossas ribaltas) pela legião de estrelas de quem ele arrancou atuações memoráveis, é o nome do longa-metragem que Pizzini exibe nesta quarta-feira, 14, às 21h, na competição oficial do É Tudo Verdade. Tem outra sessão, na quinta, às 15h. Todas as exibições da seção competitiva da maratona documental se passam na plataforma digital Looke, precedidas de algumas palavras dos concorrentes. Em 2012, Pizzini saiu do evento criado e comandado pelo crítico Amir Labaki com o prêmio de melhor longa nacional, dado a ele por Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz. Agora, ele regressa à disputa do ETV com fome de prêmios, apoiado numa engenharia de edição primorosa, assinada por Idê Lacreta, que funde ontem, hoje e para sempre.
“Nicette Bruno dizia que, apesar de alto e forte, Ziembinski parecia uma pluma quando dirigia. Nosso Zimba flutua entre o ‘peso’ e a ‘leveza’ deste artista, entre as diversas máscaras e os vestígios dormentes nas lacunas dos arquivos”, explica Pizzini, que garimpou imagens de arquivo na Polônia, onde seu biografado nasceu.
Conseguiu ainda, nos acervos na Cinédia, a primeira imagem em movimento de Ziembinski no Brasil, no filme Samba em Berlim (1943), de Luiz de Barros. É um registro que coincide com a chegada dele por aqui, em meio ao pesadelo da 2ª Guerra Mundial. No Rio de Janeiro, então com 33 anos, ele se aproxima da companhia Os Comediantes, formada por artistas e intelectuais interessados na dramaturgia moderna. Sua abordagem, ao encenar textos locais e estrangeiros, bate em convenções morais vigentes.
“Com Vestido de Noiva, Ziembinski introduz o expressionismo no Brasil, no início dos anos 1940, com mais de 200 mudanças de luz em cena, o que o levou a recorrer aos monumentos públicos, e até aos refletores da Light, já que, na época, usava-se praticamente uma luz única na ribalta”, diz Pizzini. “Zimba aboliu o ponto em cena e ensaiou seis meses antes da estreia revolucionária da peça no Teatro Municipal do Rio. Mas ele não parou por aí, pois trouxe em sua bagagem de ator e diretor, precocemente consagrado na Polônia, os princípios teóricos de Stanislavski, como o método de imaginar uma ‘vida pregressa’ do personagem. Além disso, trouxe o teatro simbolista de Paul Fort e técnicas inovadoras de Meyerhold que ele conheceu pessoalmente na Rússia. Seu trabalho de encenador, quando chegou ao Rio, já era uma síntese destes movimentos e se adensou no encontro do ‘anjo’ que era com o ‘demônio do Nelson’, conforme definiu Domingos Oliveira, em referência à sinergia dele com Nelson Rodrigues.”
Embora toda a trajetória pessoal e profissional de Ziembinski esteja compactada (mas com transcendência) ao longo dos 78 minutos de Zimba, o filme vai além dele, para ensaiar uma espécie de genealogia da modernidade nas artes cênicas do Brasil. A presença de Camilla Amado, parceira de cena de Ziembinski, em demolidoras reflexões, é parte dessa cartografia histórica de Pizzini.
“Zimba tinha uma paixão mística pelo teatro que, para ele, era um ritual religioso. Pena que, no cinema brasileiro, além de Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr., que segue em uma chave tropicalista, e o drama policial Veneno, de Gianni Pons, ele não tenha praticado mais essa veia expressionista, levando-a às nossas telas”, diz Pizzini, que recupera imagens marcantes de Ziembinski na TV, onde viveu Stanislava Grotowiska, em O Bofe (1972), e Conrad Mahler, em O Rebu (1974). “Sinto que Zimba tem muito a ver com a investigação estética iniciada por mim em Glauces, Estudo de um Rosto e, antes disso, com ensaios que realizei com absoluta liberdade, em parceria com o Canal Brasil, que vão de Retrato da Terra, sobre Glauber, a Helena Zero, sobre a atriz e diretora Helena Ignez, passando por Um Homem Só, acerca de Leonardo Villar, e Mar de Fogo, em que falo do Mário Peixoto. Tais estudos compõem uma vasta pesquisa de linguagem, que expõe métodos, escolas e modos de interpretar in progress. Zimba é fruto destas experiências narrativas, que flertam com lógicas de artes afins, como a literatura, a pintura, o teatro, o próprio cinema. É uma procura sucessiva pela polifonia e a intertextualidade que extrapole à chamada ‘voz de deus’ na arte.”
Na edição com Idê, amparado na sofisticada mixagem de Ricardo Reis Chuí e Miriam Biderman, Zimba é articulado em primeira pessoa, como se Ziembinski falasse de si mesmo, tendo uma interlocução em depoimentos de Nathália Timberg e das já citadas Camilla Amado e Nicette Bruno, que relatam e interpretam situações cênicas, revelando um convívio íntimo com o diretor. “Zimba está no ar”, brinca Pizzini. “Neste cinensaio, aproximamo-nos do personagem Zimba, pelos vãos, paradoxos, textos e texturas, as sutis e as evidentes, em seu legado.”