Atriz Ingrid Guimarães dá os primeiros passos na inédita função de ‘showrunner’

04/10/2021 17:10
Por Ubiratan Brasil e Mariane Morisawa, especial para o Estadão / Estadão

“Estou me sentindo como aquela estudante que, depois de passar muitos anos na mesma escola, está ansiosa para começar em outra totalmente diferente”, contou a atriz Ingrid Guimarães, entre sorrisos. Ela conversou com o Estadão na noite de quinta-feira, dia 30, e, apesar de ter vivido um dia estafante, entre reuniões e sessão de fotos, continua radiante em seu vestido amarelo.

“Minhas horas de sono se reduziram de oito para seis por noite e sempre acordo com alguma ideia na cabeça.” Nada surpreendente para quem ostenta o título de um dos grande nomes da comédia nacional, responsável por filmes que figuram entre as maiores bilheterias brasileiras de todos os tempos. Mas, mesmo senhora de seu ofício, Ingrid decidiu encerrar um contrato que já durava 19 anos com a Globo para começar uma nova e desafiante fase de sua carreira: ela assinou contrato de exclusividade com a plataforma de streaming Amazon Prime Video, cujas produções chegam a mais de 200 países.

Mas não foi uma simples “mudança de escola” – a partir de agora (e pelos próximos três anos, com possibilidade de somar mais um), Ingrid assumirá um posto ainda pouco conhecido no showbiz brasileiro: o de “showrunner”, função já comum na TV americana. Trata-se do profissional que acumula diversas funções, como administrar a criação, produção, roteiro, escolha de direção e elenco, entre várias outras. Ou seja, é o responsável pela definição do tom do programa – e também pelo seu sucesso.

Assim como Ingrid, a Amazon Prime também contratou o ator e escritor Lázaro Ramos para a mesma função. “Essas admissões (de nomes conhecidos da TV) já são um movimento muito forte nos Estados Unidos. Cada pessoa hoje é a sua marca e o que queremos fazer é ampliar a voz das pessoas que contratamos”, comentou Malu Miranda, head de conteúdo original para o Brasil da Amazon Studios, ao Estadão. “É uma felicidade poder trabalhar com pessoas de talento que falam com o Brasil todo.”

“São significativas a minha escolha e a de Lázaro para essa função, especialmente depois da morte de Paulo Gustavo”, comenta Ingrid, lembrando do grande amigo e humorista, morto em maio passado. De fato, Gustavo já tinha acertado um projeto com a empresa de streaming e estimulava Ingrid, que havia sido convidada, a aceitar a proposta. “Paulo tinha uma grande visão de mercado e, com os problemas enfrentados pelo cinema (tanto pela pandemia como pela ação maléfica do governo federal), ele sabia que o streaming era o caminho seguro a ser percorrido, onde haveria muitas oportunidades de realizações.”

Assim, a fim de honrar e até de contradizer o amigo (“Paulo me provocava ao dizer que eu não tinha coragem de aceitar”), Ingrid decidiu finalizar um longínquo contrato com a Globo, além de encerrar também as produções realizadas com o canal GNT. Mas, não foi uma decisão fácil – além da morte de Paulo Gustavo (“me deixou, pelo menos, dois meses paralisada e com dúvida se aceitaria sem a presença dele”), Ingrid interrompeu um produtivo relacionamento com a emissora. “Comecei em um programa do Chico Anysio, fiz vários humorísticos e até novelas”, enumera. “Realizei o sonho de uma menina nascida em Goiânia.”

Ao lado de colegas (especialmente Heloisa Périssé), Ingrid tornou-se uma especialista do humor – como poucos profissionais, ela descobriu a exata entonação, o timing certo, enfim, a melhor forma de se dizer uma frase que arranque gargalhadas. Logo, o público criou empatia com seus personagens, geralmente tipos comuns, de fácil identificação. Da televisão, migrou naturalmente para o cinema, no qual tornou-se a rainha das bilheterias – quatro de suas comédias logo figuraram entre os filmes mais vistos no País entre 2000 e 2017.

“O comediante é um criador: ele primeiro ri de seu mundo para então o mundo rir dele”, ensina ela que, ao constatar a fragilidade da vida, exposta ao longo da pandemia (que vitimou milhares de brasileiros, como, novamente lembrado, Paulo Gustavo), se sentiu mais decidida a aceitar o convite da Amazon Prime. “Faço 50 anos em 2022 e isso me fez pensar em como o tempo passa rápido, não se pode desperdiçá-lo.”

A idade foi decisiva ainda para afinar um ponto de vista que Ingrid já construía quando criou e apresentou, em 2018, a série Viver do Riso, para o Canal Viva. Ali, ela decidiu buscar as raízes do humor a partir do depoimento de colegas de profissão, representantes de gerações diversas. E, com esse valioso trabalho, Ingrid não apenas arrancou gargalhadas como conseguiu confissões de mais de 90 artistas que, em conversas intimistas, falaram com franqueza sobre os efeitos do humor no Brasil.

“Juntos, eles constituíam a verdadeira história do riso no Brasil. E, como muitos infelizmente já morreram, o documentário se transformou em um valioso documento histórico”, observa Ingrid que, tão logo percebe que o programa não consta momentaneamente na grade da emissora, pede que ele volte a ser oferecido.

“Vivemos em um país que, além de outros problemas de relacionamento social, é marcado também pela ‘velhofobia’, ou seja, a maturidade não é mais sinal de experiência acumulada, mas de alguém ultrapassado”, reclama. “Mas, sei que tem solução e fiquei muito emocionada ao acompanhar a cerimônia de entrega do prêmio Emmy (o Oscar da TV americana) em que diversos artistas veteranos, especialmente mulheres, saíram vencedores, uma evidente constatação de sua importância para o mercado.”

Assim, como primeira mulher a ser uma “showrunner” em uma grande corporação no Brasil, Ingrid já traçou seus planos. O primeiro está em uma área na qual ela é mestra. “Como também queria o Paulo Gustavo, vamos fazer um filme popular, quero trazer o público que acompanhou a mim e a ele para o streaming”, explica. “Em seguida, uma série com o protagonismo feminino de todas as idades e com um texto com direito para falar sobre qualquer assunto.”

Ainda em seus planos, Ingrid pretende criar um programa com periodicidade a ser definida. “Sou uma apresentadora de raiz, gosto de contar a história dos outros, sou uma espécie de antropóloga”, diverte-se ela, que mantém contato constante com Lázaro Ramos. “Como estamos em uma nova função, trocamos muitas ideias sobre projetos e viabilidades, vamos criar algo juntos também.”

Com a mente fervilhando de ideias, Ingrid já começa a dar os primeiros passos como “showrunner” – na quinta-feira, antes de conversar com o Estadão e de posar para fotos no estúdio de Jairo Goldflus para imagens como a que ilustra essa página, ela se reuniu durante quatro horas com uma equipe de roteiristas a fim de já delinear diferentes projetos. “A Amazon é ampla, oferece também livros, podcasts, ou seja, as possibilidades são enormes.”

Apesar de se desvencilhar dos contratos com outras empresas, Ingrid vai honrar ainda um, que ficou pendente: um longa com a Paris Filmes. “Deverá se chamar Minha Irmã e Eu, e vou contracenar com Tatá Werneck. É a história de duas irmãs que voltam a se reunir depois que a mãe desaparece. Será uma comédia, claro, mas com um tom agridoce”, explica ela, feliz porque a filmagem acontece em janeiro em sua cidade natal, Goiânia. “Afinal, foi lá onde tudo começou.”

Nos EUA, cargo é decisivo

O “showrunner” é uma figura conhecida da televisão americana – a revista Variety começou a usar o termo pela primeira vez em 1992. Mas foi lá nos anos 1970 que a TV se tornou o veículo do roteirista, deixando de ser apenas um produto totalmente controlado pelos estúdios. Os escritores ganharam autonomia e passaram a ter contratos fixos em séries como The Mary Tyler Moore Show. Em algum momento da década seguinte, nasceu o misto de roteirista e produtor executivo, responsável por gerenciar a sala de roteiristas, os rumos e o tom da história, a escolha do elenco e dos diretores dos episódios, o orçamento. Ele ou ela comanda a série, ou “runs the show”. Daí “showrunner”.

Essa pessoa – às vezes, mais de uma – é quem leva a culpa pelo fracasso ou é elogiada pelo sucesso. The Walking Dead, por exemplo, cuja 11ª temporada está no ar no Brasil no Star+, começou com Frank Darabont, demitido logo após o primeiro ano por causa de seu comportamento no set. Glen Mazzara assumiu o comando na segunda e terceira temporadas, períodos de grande crescimento. Scott M. Gimple ocupou a posição entre a quarta e a oitava temporadas. Foram dele decisões polêmicas, como o assassinato brutal de Glenn (Steve Yeun), que muita gente achou ter passado dos limites e derrubou a audiência, e a morte de Carl (Chandler Riggs), que gerou uma petição dos fãs para removê-lo do cargo. A partir do ano seguinte, Gimple foi substituído por Angela Kang. Ela fica como “showrunner” até o encerramento desta temporada, que será a final.

Nas últimas décadas, os “showrunners” ganharam tanta fama quanto os diretores no cinema. Os espectadores seguem os seus favoritos, seja Vince Gilligan (de Breaking Bad e Better Call Saul), Damon Lindelof (Lost, The Leftovers, Watchmen), Noah Hawley (Fargo, Legion) ou Robert e Michelle King (The Good Fight, Evil). Por isso, a Netflix começou a contratar alguns deles a peso de ouro, seja Shonda Rhimes, com contrato de quatro anos estimado em US$ 100 milhões, ou Ryan Murphy, que tem contrato de cinco anos estimado em US$ 300 milhões.

Mas há quem esteja tentando subverter o modelo. Em algumas séries recentes, o diretor teve bastante poder. Cary Joji Fukunaga entrou em conflito com o criador e roteirista de True Detective, Nic Pizzolatto, na primeira temporada. O primeiro ano de Big Little Lies era de Jean-Marc Vallée tanto quanto do criador e roteirista David E. Kelley. No caso do Estúdio Marvel, que começou a produzir suas próprias séries, com títulos como WandaVision, Loki e Falcão e o Soldado Invernal, não existe “showrunner”, apenas roteirista-chefe – o “showrunner”, afinal, é o próprio Kevin Feige, que sempre tratou os filmes como uma série de televisão, com episódios conectados. Os diretores participam muito mais da criação e edição do que os próprios roteiristas.

Há uma preocupação geral de que isso pode ser ruim para a televisão, que funciona bem no modelo atual. Muitos dos melhores roteiristas dificilmente se submeteriam a tal esquema. Então, por enquanto, o “showrunner” continua sendo rei – ou rainha.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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