Avni Doshi lança ‘Açúcar Queimado’, sobre a relação conflituosa entre mãe e filha

24/11/2021 08:00
Por Maria Fernanda Rodrigues / Estadão

Avni Doshi nunca imaginou o sucesso que seu livro faria: de um ano para cá, Açúcar Queimado foi finalista do prestigioso Booker Prize, figurou nas listas de melhores livros do Guardian e da Economist, teve os direitos vendidos para publicação em mais de 20 idiomas e para uma adaptação cinematográfica. Na verdade, ela nem achava que conseguiria terminá-lo. Muito menos publicá-lo.

Foram sete anos até que a voz de Antara, sua narradora, aparecesse de vez, e a autora, filha de imigrantes indianos nascida nos Estados Unidos, em 1982, e que vive hoje em Dubai, pudesse levar adiante essa história sobre memória e sobre a relação entre uma filha e sua mãe. Uma relação complicada, como se lê no primeiro parágrafo: “Estaria mentindo se dissesse que o sofrimento da minha mãe nunca me deu prazer”.

E no segundo: “Sofri em suas mãos quando criança, e qualquer dor que ela viesse a sentir depois disso me parecia uma espécie de redenção – o universo encontrando seu equilíbrio, onde a ordem racional de causa e efeito se alinhava”.

Mas a mãe está começando a se esquecer das coisas e a protagonista sabe que nunca mais conseguirá resolver o que quer que precise ser resolvido para ela se libertar desse peso e do rancor que sente. A mãe está se esquecendo e precisa da filha.

Açúcar Queimado, romance situado em Pune, na Índia, acaba de ser lançado pela Dublinense. “O livro surgiu de uma imagem – o rosto de uma mulher dividido em dois, que mais tarde se tornaria duas pessoas distintas. Logo percebi que eram mãe e filha. A ideia de reflexos e distorções estava lá desde o início”, conta Avni ao Estadão.

Antara é uma jovem artista que se vê às voltas com essa mãe, Tara, que nunca se encaixou, que abandonou marido e, com a menina, foi parar numa comunidade mística. Lá, virou amante do guru, deixando a filha pequena em segundo plano, vagando desamparada. Depois piora. Quando Tara é rejeitada, ela deixa o local e vai viver com Antara na rua. A família intervém e as duas encontram uma forma de seguir adiante, de sobreviver. A menina cresce com alguns distúrbios, a mulher encontra um novo amor. Há uma nova rejeição. Quando esta história começa, a mulher vive sozinha e a narradora tem um companheiro. As duas, porém, dividem uma mesma dor.

Seguimos Antara em sua tentativa de dar conta da situação – as idas ao médico, suas pesquisas, a busca de uma convivência pacífica até que o Alzheimer apague toda a memória de sua mãe. Acompanhamos a história que ela escolhe contar, suas próprias lembranças, e ela também está confusa. É perigoso conhecer apenas um dos lados?

“Não sei se perigoso. Estamos sempre comparando e julgando. Isso é o que o nosso cérebro quer fazer. Mas é uma proposta interessante: resistir à necessidade de provas, não oferecer a conclusão”, diz a autora, que começou a pesquisar sobre o Alzheimer após a avó ser diagnosticada com a doença. “Eu penso que é isso que tento fazer como escritora. Sinto que é como ter nas mãos a tensão entre dois opostos irreconciliáveis.”

SOBRE LACUNAS

Esta é uma história, também, sobre memória e as lacunas que permanecerão se não procurarmos as respostas, se não conversarmos enquanto é tempo. Não que isso vá nos dar respostas confiáveis, na opinião da autora. Para ela, essas lacunas nunca poderão ser preenchidas de verdade.

“Depois que um momento passa, ele se perde, mudando constantemente em nossa mente e na dos outros. Nós evocamos a memória de nossa maneira única, com base em nossos vieses, nossos complexos, nossos gatilhos, nossos planos”, conta a escritora. “Podemos aceitar uma memória coletiva ou familiar como nossa – até certo ponto, todos fazemos isso. É uma prática útil, onde podemos estar alinhados com alguma história sobre nós mesmos. Mas o que acontece quando estamos em conflito uns com os outros? Então, para que serve a memória? A memória cria conexão, mas também acaba com ela.”

E é um livro sobre o amor, cuidado e abandono, respeito à nossa individualidade, identidade e sobre a ambiguidade da maternidade. “Sempre haverá alguma coisa sobre rótulos e papéis que não se encaixam entre a experiência incorporada de um indivíduo e a projeção de expectativas externas. Esse espaço intermediário é o que me interessa – como ele se apresenta como um estado de espírito ou um tipo de atmosfera. Existe uma área entre nós que está carregada de sentimentos e ideias que dificilmente reconhecemos.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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