Bessie Smith: Sai biografia por uma feminista

29/01/2023 08:26
Por João Marcos Coelho / Estadão

As histórias convencionais do blues até elogiam as primeiras gravações do gênero nos Estados Unidos, feitas por mulheres negras como Ma Rainey (1886-1939) e Bessie Smith (1894-1937), mas jogam um peso muito maior nos “bluesmen”. Narram uma história masculina do blues, que se torna majoritária só a partir da segunda metade dos anos 1920. A poeta e romancista negra Jackie Kay, 61, nascida em Edimburgo e adotada por uma família branca, aprendeu com o pai adotivo a amar os blues de Bessie desde a adolescência. E sentiu que a luta de Bessie também era, em certa medida, a sua luta. Seu livro traz os versos dos blues no original e em traduções corretas para dar uma ideia mais clara aos leitores da força dessas canções para além de uma música visceral, cantada por uma voz poderosa, áspera, quase gritada – cacoete de quem se submetia ao precário maquinário de gravação naquele momento histórico.

Não dá para falar de Bessie Smith, por exemplo, como mera antecessora. Com seus quase 200 blues gravados desde 1923, ela não ganhou à toa a coroa de “Imperatriz do Blues”. Mais: Bessie não apenas cantava composições de terceiros. Compôs um terço dos blues que gravou ao longo de sua carreira. Curta, por sinal. A menina negra, pobre, nascida em Chattanooga, no Tennessee, foi discriminada mesmo nos círculos de vaudeville negros porque sua pele era escura demais. Mesmo assim, saboreou sua glória até o crack da Bolsa de Nova York em 1929. A ascensão dos bluesmen jogou-a – a ela e às demais blueswomen – a patamares mais baixos de vendagem de bolachões e de cachês. Começou vendendo 780 mil cópias em três meses de Downhearted Blues, e iniciou a década de 1930, já na Depressão, vendendo 400 cópias, se tanto.

O tema principal de seus blues é o amor… e a falta de amor. Jackie alerta que “um número considerável de suas canções era sobre problemas sociais, crime e punição, pobreza e doença, trabalho e morte” Vários destes blues estão ausentes das antologias modernas de seus blues. Como, por exemplo, no tragicômico Send me to the Electric Chair: a mulher pede ao juiz que ouça seu apelo, mas não quer simpatia porque cortou a garganta de seu homem. “Ela realmente quer ser mandada para a cadeira elétrica”. Os versos são diretos: “Eu matei meu homem, quero colher o que plantei/Juiz, juiz, ouça seu juiz, me mande para a cadeira elétrica”. Toda vez que ela canta “Judge, Judge” o trombone de Charlie Green faz um glissando gaiato. Jackie imagina “as mulheres ouvindo isso em 1927 e rachando o bico de tanto rir”.

DISCRIMINADA. Bessie jamais se vitimizou. Aqui Jackie mostra que leu Blues Legacy and Black Feminism, livro escrito pela feminista negra Angela Davis, 79 anos, a partir de curso ministrado na Universidade da Califórnia. Além de enfatizar o lado duro, duríssimo, da vida de Bessie – apanhava do marido, que lhe roubou tudo que ganhou na vida –, Jackie a retrata como uma feminista intuitiva. Aí entra a tese de Angela Davis: cantoras como Ma Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday são guerreiras discriminadas não só por lutarem pelos direitos dos negros, mas também de gênero (Bessie era abertamente bissexual) e postura ideológica.

Bessie morreu em 26 de setembro de 1937 num acidente de carro a caminho de sua cidade natal. Espalhou-se a fake news de que não tinha sido levada a tempo para um hospital próximo porque era negra. Horas depois, morreu no Hospital Afroamericano. Seu biógrafo Chris Albertson resgatou a verdade em 1971. Não houve preconceito racial, ao menos naquele momento trágico. Jackie acusa a elite negra do Harlem de ter se omitido. Cita Ethel Walters, Duke Ellington, Louis Armstrong. Nenhum deles compareceu. Bessie deixou uma grana para a lápide, mas seu ex-maridão fugiu com o dinheiro.

INDIGENTE. A Imperatriz do Blues permaneceu enterrada como indigente por 33 anos. Jackie se pergunta: “Qual o significado de uma sepultura não identificada? As covas de pessoas pobres, negras e brancas, não recebem placas na terra dos bravos, lar da liberdade. As covas dos escravizados não eram identificadas. É como morrer sem um nome. É como ser ninguém”.

Quando a Columbia lançou a obra completa de Bessie em cinco álbuns duplos, em 1970, o jornal Philadelphia Inquirer iniciou uma campanha de arrecadação sugerida em carta por uma leitora “dona de casa negra”. Bastaram duas doadoras: Juanita Green, que fora faxineira de Bessie, e Janis Joplin.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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