Bete Coelho traz a inquietude de ‘Molly Bloom’
Conhecida por seu rigor técnico, a atriz Bete Coelho surpreende ao se mostrar dominada pela emoção diante da reestreia do espetáculo Molly Bloom no Teatro Unimed. “É isso mesmo, o meu estado é de alegria, de vida, por reencontrar uma plateia e cumprir todos os rituais depois de tanto isolamento e retrocesso”, afirma a artista, que lançou a montagem em agosto passado, em rápida temporada no Sesc Avenida Paulista.
Em uma direção compartilhada com Daniela Thomas, Bete leva ao palco o monólogo final da personagem Molly Bloom, que encerra a obra-prima Ulysses, publicada em 1922 pelo irlandês James Joyce (1882-1941). Ela confessa que, apesar de ler fragmentos do livro há pelo menos 30 anos, guiada por incentivadores ilustres como o poeta Haroldo de Campos (1929-2003), só na pandemia chegou ao final das mais de 800 páginas. “Me encantei com aquele final. Como pode um homem, usando da perspectiva feminina, escrever daquela forma há um século e tratar de questões fortes ainda hoje?”, se questiona.
A ambientação cênica criada por Daniela e Felipe Tessara reproduz um quarto, mais precisamente mostra uma cama. O começo de tudo, como um prólogo, é a chegada em casa de Leopold Bloom (representado por Roberto Audio), que, exausto depois de vagar pela cidade o dia inteiro, cuida para se deitar sem acordar a mulher.
Com o marido entregue ao cansaço, Molly desperta para uma viagem que a leva a recriar narrativas em torno da infância, de seus amores, da tragédia de um filho morto e até das preocupações com a idade. Deitada na cama, até insinua um orgasmo.
ESPELHO
Bete nunca encara o público, muitas vezes fica de costas, em um provocativo distanciamento, capaz de remeter tanto a um confessionário como a um divã de psicanálise. Suas expressões são refletidas por um espelho de fundo ou amplificadas por cinco câmeras, sob a direção audiovisual de Gabriel Fernandes, que jogam em telões detalhes faciais ou recortes do corpo, de acordo com o tom das confissões. “Ficar de costas me dá uma ansiedade louca, quero olhar para as pessoas. Mas, aos poucos, vou me acostumando, tanto que meu olhar me vê pelo espelho e pareço outra.”
Ao decifrar Molly Bloom, Bete olha para si mesma, mulher de 60 anos, com quatro décadas de uma carreira de investigação incomum e predomínio teatral, e reflete sobre a lucidez da personagem, que, no texto, tem 33 ou 34 anos.
“Eu não sei se o mundo ficou imaturo, o que posso garantir é que nos meus 34 eu não tinha esse repertório todo, devia ser porque todas elas, naquela época, se casavam cedo, procriavam e o desejo girava em função disso”, analisa.
Os impulsos de Molly encontram comunicação na atriz inquieta em relação à sua arte. O acabamento audiovisual é resultado de um trabalho desenvolvido com Gabriel Fernandes, também seu parceiro de vida, que rendeu dois “teatrofilmes” – Medeia, recriação do mito grego pela dramaturga Consuelo de Castro, e Gaivota, inspirada na peça de Anton Chekhov.
A atriz defende que a bagagem do teatro filmado adquirida por imposição da pandemia não pode ser descartada como um mero tapa-buraco. “Tudo o que aprendemos na época e usamos em Molly Bloom era necessário à proposta, foi pensado como uma equalização de elementos a serviço do espetáculo”, garante.
Bete é uma das cabeças da Cia. BR116, fundada há onze anos, que já levantou os espetáculos O Terceiro Sinal e Mãe Coragem, entre outros. Formada no meio de grupos, como a Companhia de Ópera Seca, criada por Gerald Thomas nos anos de 1980, a atriz reconhece que só através do trabalho coletivo é possível desenvolver uma linguagem. “Você nunca começa do zero. Gosto de trocar com jovens, dividir e até ensinar, assim eu me renovo”, justifica.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.