Borboleta Azul: dois anos após a criação, projeto que nasceu do luto segue capacitando pessoas para lidar com crianças autistas

Com a perda da família, Alessandro Garcia criou um projeto para honrar a memória de seu filho autista

15/fev 08:30
Por Manoelle Rocha

Um projeto que nasceu do luto e da vontade de manter sempre viva a memória da família. Este é o Borboleta Azul, criado por Alessandro Garcia, após a tragédia do dia 15 de fevereiro de 2022. O professor, na ocasião, perdeu a esposa, os dois filhos e os sogros. Mesmo com a imensurável dor da perda, encontrou forças para criar um projeto que tem como objetivo capacitar pessoas para lidar com crianças autistas.

Bento, de 5 anos, era o filho mais velho de Alessandro e Carol, e tinha autismo. Ele conta que a iniciativa foi uma maneira de honrar a memória da família e que a inspiração veio da esposa, que além de uma mãe exemplar, o ensinou muito sobre o tema. Alessandro acrescenta que ela sempre se colocava à disposição para conversar com outras mães de crianças autistas.

“Eu vi muito isso na Carol, eu vi tudo que ela fazia. Ver o comprometimento dela, me ajudava e me inspirava, me fazia ter uma certa esperança e me comprometer também”.

O projeto leva este nome devido a uma borboleta azul que estava sobre Bento quando ele foi encontrado, e que só voou depois que o corpo do pequeno foi retirado. Além disso, azul é a cor do símbolo do autismo.

Alessandro revela que o projeto original tinha outro objetivo: o de pagar plano de saúde para as crianças autistas que não tinham condições, mas acabou indo para o aspecto da capacitação de profissionais que lidam com este público.

Em 2022, primeiro ano do projeto, o trabalho foi intenso. Foram oferecidos diversos cursos, um a cada mês, e cerca de 50 pessoas foram capacitadas. Já em 2023, o ritmo do trabalho acabou desacelerando, com capacitações mais curtas, com duração de um dia, além de arrecadação em dinheiro para instituições e busca por acompanhamento psicológico para algumas famílias.

“Em 2023, nós fizemos quatro formações que foram realizadas na Igreja Santo Antônio, no Alto da Serra. Conseguimos também arrecadações em dinheiro para ajudar outras instituições que trabalham com crianças autistas”, explicou.

Contudo, depois de algum tempo, eles notaram que o modelo do ano anterior era mais funcional.

Foto: Arquivo pessoal

Cinco pessoas integram o Borboleta Azul: Alessandro, Bete, Rafaela e Bianca, que são mães de crianças autistas, e também Ana Paula, que é psicóloga e atendia o Bento. Alessandro afirma que a ajuda das integrantes é essencial e que sem elas, nada teria sido feito.

Importância do projeto

Alessandro pontua que existem muitas crianças autistas em creches e escolas, e que é comum as pessoas não saberem lidar com elas. No entanto, isso acaba prejudicando não só as crianças, mas toda a questão do processo de inclusão.

“Quando temos pessoas capacitadas, não é um ganho apenas para as crianças, é um ganho também para toda a comunidade escolar e para todos”, reforça.

Para Alessandro, a falta de capacitação é algo grave, que afeta diversos lugares. Como professor, ele fala com propriedade do fator que implica diretamente em seu dia-a-dia.

“Tenho diversos alunos com necessidades e como lidar com eles? Não é um favor, é um direito. A capacitação é sempre fundamental”, enfatiza.

Ele explica que o projeto já capacitou cuidadores, mediadores, enfermeiros, entre outros, e acredita que o impacto deste trabalho na sociedade é enorme.

Curso de capacitação do Borboleta Azul.
Foto: Arquivo pessoal

Aprendizado

Quando volta ao passado e lembra do primeiro dia do projeto, Alessandro recorda que foi um dia difícil, com uma mistura muito grande de sentimentos difíceis de processar.

“Não foi um dia fácil, mas ao mesmo tempo foi muito bonito! Foi o dia de ver as pessoas comprometidas com a causa, deu uma alegria saber que algo de bom estava sendo feito”.

Para ele, os quase dois anos do projeto foram muito recompensadores. Contudo, não deixa de citar os desafios encontrados.

“É desafiador estabelecer a criação de um projeto como este. A vida atravessa muitas coisas, os voluntários tem seus compromissos do dia-a-dia, por exemplo, as exigências de trabalho”, explica o professor, que acrescenta, também, a importância das demais integrantes com a causa.

“Vi muita gente boa atuando no projeto, principalmente a Ana Paula, a Bete, a Bianca e a Rafaela. Elas não tinham obrigação, mas se mobilizaram com toda a situação e se importam com as crianças autistas. Perceber essa bondade das pessoas, o interesse pelo outro, isso é uma lição que ficou, existem pessoas boas nesse mundo”.  

Apesar de enxergar toda a movimentação e atuação positiva realizada com o projeto, ele não deixa de comentar sobre a falta de preparação da sociedade e das redes municipais.

“Temos que buscar melhor tratamento possível, o melhor tratamento disponível, dentro dos recursos e possibilidades de cada família. O poder público falha bastante por não disponibilizar essas coisas”.  

Alessandro ressalta que a falta de preparo não é apenas em relação ao autismo, mas também abrange outros tipos de necessidades e que mesmo com alguns avanços, ainda existe trabalho a ser feito.

“O número de crianças autistas tem crescido proporcionalmente e precisamos passar por um processo de mudança de mentalidade e estrutura, que ainda está longe de acontecer. Existem ganhos, mas a necessidade é muito grande”.

Planos para o futuro

Em 2024, o grupo pretende voltar a atuar, nos mesmos moldes de 2022, aonde conseguiram alcançar uma melhor resposta e impacto. 

Tivemos uma reunião no começo do ano para reavaliar os trabalhos e a gente deve voltar ao modelo do que era feito em 2022, ou algo muito parecido, de fazer o curso mais longo e também continuar ajudando as outras instituições como fizemos no ano passado”, pontua Alessandro. 

Eles pretendem encontrar também uma maneira para que os trabalhos se encaixem na vida das pessoas que ajudam.

“Como é que a gente consegue criar isso de maneira sustentável, de maneira que se encaixe na vida das pessoas, inclusive na minha própria vida? Meu olhar depois de dois anos é pensar o que vai ser daqui em diante”.

Mensagem especial

Alessandro lembra com muita tristeza e saudade do dia 15 de fevereiro de 2022, data em que ele perdeu sua família. Mas também relembra com gratidão das atividades e coisas boas que fez com os familiares naquele dia e nos anos que passaram juntos.  

“Foi o primeiro dia das crianças na escola, minha convivência com a Carol, então eu consigo ser grato pela graça de ter convivido com eles esse período. Dá uma dor saber que o tempo com as crianças foi tão pequeno, eu queria ter tido muito mais”, relata.

Ele compartilhou duas experiências que servem de exemplo para outros pais e familiares de crianças autistas. A primeira, foi o caminho de descoberta até o diagnóstico do filho Bento.

Até descobrir que o pequeno era autista, o casal percorreu um caminho muito difícil e confuso. Depois de um tempo, eles perceberam que essa confusão era normal e que conviver com pessoas que passaram pelos mesmos questionamentos pode ajudar no processo. Além disso, ter pessoas capacitadas acompanhando e auxiliando com as novas descobertas do caminho a ser percorrido, pode ajudar.

“A gente não sabe muito bem o que fazer ou se a gente está fazendo alguma coisa errada. Na verdade, não é bem isso, quando bem acompanhados a gente descobre os caminhos a serem traçados e no amor ao nosso filho a gente segue trilhando esse percurso”.

Alessandro recorda que diferente dele, sua esposa Carol nunca questionou a Deus o porquê de o filho ser autista. Ao invés disso, ela afirmava que sempre perguntava “o que” ela deveria fazer.

“A vida não acabou ou nada disso. A gente vai descobrir muita riqueza no nosso filho. Por exemplo, com o Bento, quanta riqueza era conviver com o ele, como eu sinto falta dessa riqueza. Devemos buscar o melhor e saber que apesar das nossas falhas, nosso amor e comprometimento com os nossos filhos vão prosperar”.

A segunda experiência é sobre o convívio com crianças autistas. Ele afirma que antes do filho, o contato com estas crianças era esporádico, apesar de ser professor.  

Para ele, ter uma sociedade mais inclusiva é fundamental e afirma que se tivesse tido convívio com essas crianças quando era aluno, por exemplo, teria ajudado para que ele pudesse lidar com o filho com muito mais naturalidade.

“A inclusão é uma riqueza. Viver com as crianças autistas, com síndrome de down e em outras situações é fundamental”, afirmou o professor.

Alessandro conclui falando sobre a importância de uma sociedade mais inclusiva.

“Nem sempre temos essa postura, temos que ter isso. Não só pelas crianças, mas pela sociedade como um todo, isso nos humaniza”, finaliza.

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