Canções sobre vida e morte na Sala São Paulo

07/07/2022 08:10
Por João Luiz Sampaio, especial paa o Estadão / Estadão

Se pudesse, a meio-soprano alemã Wiebke Lehmkuhl viveria feliz apenas cantando a música de Johann Sebastian Bach. É ela mesma que diz, mas, depois de uma breve pausa, complementa. “Talvez Mahler também, para agitar um pouco as coisas”, brinca.

A escolha cai bem para os concertos que ela faz nesta quinta, 7, sexta, 8, e sábado, 9, na Sala São Paulo ao lado da Osesp regida por Thierry Fischer: Wiebke vai interpretar canções do ciclo Des Knaben Wunderhorn do compositor austríaco, na primeira parte de um programa que terá também a Sinfonia nº 2 de Sibelius – no domingo, 10, sem a cantora, a Osesp toca também no Auditório Claudio Santoro, na programação do Festival de Inverno de Campos do Jordão.

“Na época de estudante, todos os meus colegas queriam cantar Mozart. Era Mozart para todos os lados. Mas eu não via na obra dele um grande papel para o meu tipo de voz. Mas, Mahler… Ele e Bach faziam a minha cabeça. E acho que ainda fazem, claro.”

Daquela época, ela se lembra do conselho de uma professora, quando começou a estudar o ciclo que vai apresentar agora em São Paulo: divirta-se. “É uma música muito interessante, pelos significados que carrega, claro, mas também pelo fato de que cada canção é diferente e exige uma interpretação específica.”

SENTIDOS

Mahler escreveu Des Knaben Wunderhorn, ou A Trompa Mágica do Menino entre 1887 e 1890. Usou como base uma coletânea de poemas folclóricos alemães publicada em 1805 por Achim von Arnim e Clemens Brentano. E a influência dos textos foi além das canções escritas a partir deles. As quatro primeiras sinfonias do autor ficaram conhecidas como as Sinfonias Wunderhorn e utilizam textos da coletânea ou melodias também presentes no ciclo de canções.

“É interessante pensar no significado dessas obras todas e em como elas dialogam ou não”, conta Wiebke. Ela cita como exemplo a canção Urlicht, Luz Primordial. “Mahler a usa na Sinfonia n.º 2 – Ressurreição e ali há um forte tom religioso, que se dilui quando a cantamos fora desse contexto. Não importa qual veio primeiro, se a parte da sinfonia ou a canção avulsa, mas ela se transforma a partir do contexto em que é cantada e isso é muito rico.”

Ela continua: “E o que acho particularmente interessante é que nos Knaben Wunderhorn, como em outras obras de Mahler, nada é o que parece ser à primeira vista. Você pode estar cantando sobre o amor de um jovem casal, mas ali atrás há muito mais em jogo”.

E é preciso considerar ainda a diversidade de temas que o compositor abarca. A Vida Terrena, por exemplo, é o diálogo entre filhos que dizem estar com fome e uma mãe que, ao enfim conseguir comida, os encontra já sem vida. Quem Inventou Essa Pequena e linda Canção?, por sua vez, é muito mais leve em sua evocação de um coração partido. O Sermão de Antônio de Pádua aos Peixes esconde, sob um caráter brincalhão, críticas à religião. Em Onde os Trompetes Soam um rapaz despede-se da amada antes de partir para a guerra – e o lirismo do amor se mistura à possibilidade real da morte.

“É música sobre vida, morte, amor, desencanto. Há algo de inocente nos textos, mas eles te levam a muitas reflexões. Os poemas são de 1805, Mahler os transforma em canções quase um século depois e hoje, cem anos mais tarde, seguimos cantando essa música. Elas atravessam o tempo e ganham novos significados. Cantar sobre a fome, sobre a guerra, as relações são muito claras.”

Essa atemporalidade tem a ver, segundo Wiebke, com o próprio caráter das peças. “Entre uma canção e outra você, como cantor, precisa se adaptar muito rapidamente, pois há muitos contrastes, há muitos caminhos seguidos pelos textos e você precisa estar pronto para representá-los. E quando pensamos nessas múltiplas possibilidades, nessas situações que se transformam a todo instante, não estamos falando da própria vida?”

ALMA

Aos 39 anos, a meio-soprano alemã é estrela em ascensão no cenário internacional. Tem colecionado estreias com as principais orquestras do mundo e suas gravações da obra de Bach têm sido elogiadas pela crítica. Pouco antes da pandemia, integrou o elenco de uma montagem de O Anel do Nibelungo de Wagner em Londres, cantando o papel de Erda, a Deusa da Terra, sob a regência de Antonio Pappano.

No ano passado, fez recital – disponível no YouTube – dedicado a canções de Alma Mahler, mulher do compositor e também autora, cuja obra foi tema de discórdias entre os dois. “É triste que a gente só pense nela à luz dele. Suas canções absorvem as influências da mesma Viena em que ele viveu, mas são mais calorosas, apaixonadas. Há sempre o risco de comparar os dois, o que não é justo. É preciso tempo para absorver suas ideias e entendê-la à luz de si própria”, diz.

Osesp e Wiebke Lehmkuhl

Sala São Paulo. Praça Júlio

Prestes, s/nº. 5ª (7) e 6ª (8), 20h30; sáb. (9), 16h30. R$ 25 a R$ 230. https://osesp.art.br/

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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