Carla Trabazo relata trabalho de combatentes em Uganda

29/12/2021 20:44
Por Daniel Silveira / Estadão

Em suaíli, língua banto que é um dos idiomas oficiais de Uganda, a palavra “kadogos”, quer dizer crianças-soldado. É também o título do primeiro livro da jornalista Carla Trabazo, Kadogos: A Vida de Crianças-Soldado em Grupos Armados na África Central e Oriental, lançado este ano. A publicação, que já está à venda, é fruto de uma pesquisa para uma pós-graduação em Jornalismo Internacional

Como o título sugere, este não é um livro dos mais fáceis de ler. Não por sua escrita, pelo contrário. Carla escreve de modo que os nove capítulos sejam lidos com fluidez. Mas o que se lê é, por vezes, doloroso. Essa é a primeira lição de Kadogos: estamos diante de pessoas reais. Mesmo que não aconteça atualmente em Uganda, país que Carla visitou para colher testemunhos, ainda é presente em outros tantos lugares do mundo, inclusive em países vizinhos.

No prefácio, a autora revela que seu interesse em contar essas histórias surgiu quando ainda era estudante de jornalismo, mas foi só na sua pesquisa que resolveu levar adiante. “Em 2013, quando ainda era estagiária em um jornal, estava em busca de histórias diferentes para contar. Foi quando minha irmã, que trabalha com refúgio no Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), me falou sobre a existência de crianças-soldado”, lembra. “Comecei a ler sobre e fiquei chocada de como, até então, não sabia nada sobre elas em qualquer parte do mundo e vi que, dentro da minha bolha, ninguém estava ciente”, diz.

Nessa época, a partir de relatos que leu, Carla escreveu um conto sobre um menino sequestrado que precisa matar outro para se livrar da própria morte, relato comum entre ex-crianças-soldados. É a história que abre o livro e única ficção.

VOZ. Carla dá voz a mulheres e homens que passaram pela experiência de serem sequestrados, obrigados a cometer crimes e, no caso das meninas, oferecidas como esposas aos comandantes dos grupos e/ou violentadas. “Foi um processo doloroso. Uma coisa é ler histórias num livro ou artigo, outra é ouvir frente a frente relatos pesados e muitas vezes intragáveis”, conta. “Acabei cutucando feridas que mal tinham cicatrizado, mas boa parte dos entrevistados se mostraram satisfeitos em poder compartilhar suas histórias para que ‘pessoas lá do Brasil ficassem sabendo'”.

O livro traz, ao longo de suas páginas, uma breve história da África Central e Oriental, situando o leitor quanto aos motivos de tantas disputas de poder nessa parte do continente. Em seguida, Carla escreve sobre o uso de crianças como soldados ao longo da história, incluindo a Guerra do Paraguai. A partir daí, entrevista uma série de ex-soldados em que eles relatam a “vida no mato”, as violências vividas, o processo de reabilitação, além de contar histórias de pais que tiveram seus filhos sequestrados.

“Enquanto escrevia o livro, lia e relia diariamente os relatos que coletei e percebi que, algumas vezes, me assustava com algumas histórias, como se as estivesse lendo pela primeira vez”, diz. Algumas passagens são extremamente cruas e pedem uma pausa depois da leitura, especialmente as de violência sexual sofridas por meninas, algumas menores de 10 anos. “Como mulher, tive dificuldades em ouvir esses tipos de relato e, em alguns casos, preferi tirá-los do texto final. Por mais que meu objetivo com esse livro fosse denunciar, há um limite para histórias gráficas demais”, pontua.

E, apesar disso, Kadogos é um livro necessário por trazer para mais perto uma realidade aparentemente distante do público brasileiro. “Acho que isso significa estourar bolhas e despertar para uma séria crise internacional, que não necessariamente está muito longe. Não seriam as crianças do tráfico um tipo particular de criança-soldado?” Além disso, o problema vai além de países pobres ou de grupos armados e milícias. “A idade mínima para recrutamento militar é de 16 no Canadá e Reino Unido, e 17 anos para Estados Unidos e França. Então, se potências econômicas seguem recrutando pessoas tão jovens, como a comunidade internacional vai combater o uso de crianças-soldado?”, finaliza.

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