Carta aos revolucionários

14/08/2018 11:21

Certa vez, o filósofo francês, Gilles Deluze (1925/1995) foi questionado, de forma já tendenciosa, sobre a inexistência ou falência das categorias políticas compreendidas como esquerda e direita. Sua resposta, a resposta de um filósofo/político, e não de um político/filósofo, foi de apresentar uma situação que, para ele, expressa melhor a aparente dicotomia. Segundo o filósofo, o indivíduo de direita é aquele que pensa e age no mundo a partir e preocupado inicialmente com ele próprio, lembro que Deleuze falou que era a partir do seu umbigo, seu corpo, seus interesses mais imediatos, sua família, sua saúde, seu trabalho, sua imagem, seus sentimentos, sua cidade, seu país, e, por último, na sociedade, no mundo e no planeta. Essa seria a hierarquia de preocupações do indivíduo essencialmente de direita. Para o indivíduo que se insere no campo da esquerda, a hierarquia de preocupações é outra: ele terá como preocupação inicial o mundo, depois o planeta, a humanidade, a sociedade, os seres vivos, o país, o município, a família, e, finalmente, nos seus interesses próprios e imediatos. 

Com toda a crítica que podemos tecer sobre essa singela definição, e estamos em tempos de críticas, fica aí uma provocação para reflexão. 

Ainda nesse contexto, outro dia, assistindo a uma entrevista de um candidato à presidência da república ouvi, com total sinceridade do entrevistado, que a sua posição política/econômica era, indubitavelmente, de um liberal, acreditando no mercado livre com o Estado mínimo, mas que, socialmente, ele era, com a mesma convicção, um conservador, ou seja, contra o aborto, contra a liberação das drogas etc. 

Podemos então pensar que direita e esquerda talvez não sejam mesmo categorias tão estanques e determinadas como podem parecer, mas movimentos pendulares que experimentamos todo o tempo. Encontramos, em cada um de nós, aspectos de esquerda e de direita. 

Senão vejamos. Será que quando lutamos por liberdade, justiça social, igualdade de direitos e de condições, vivemos e agimos assim nas nossas vidas cotidianas? Será que quando somos contra as privatizações, estamos mesmo pensando e agindo dessa forma? Quando falamos do desapego, da impermanência, de inventar a vida a cada dia, isso é mera retórica? Frases de efeito? 

Podemos pensar que somos bipolares, incongruentes, incoerentes. Somos apegados. Mesquinhos, miúdos nas nossas vidas pessoais. Somos críticos, juízes, acusadores. Pensamos a vida e o mundo a partir de modelos, e dos nossos modelos, é claro. Quando se trata da liberdade do outro, por exemplo, da companheira ou companheiro, somos, em geral, conservadores, privatistas de primeira ordem. Aí somos e nos colocamos como proprietários do outro, do seu corpo, seus desejos, sua liberdade. O que vem a ser o ciúme, senão essa relação coercitiva de poder? 

Então, camaradas, companheiros/as, socializar afetos jamais, aqui a relação foucaultiano de poder torna-se imperativa. O meu companheiro/a é única e exclusivamente meu ou minha. E aqui não vem ao caso a questão de gênero. Nesses casos, a situação tende a ser rigorosamente a mesma. A minha família, minhas ideias, minhas crenças, meu Deus. Nossas vidas, nossos afazeres são o que mais nos importam. 

Somos habitados por uma multidão. Somos muitas vozes. Contraditórias por natureza. E nesse sentido, como e onde reconhecemos o fascista que habita cada um de nós? O fascismo que está no outro é fácil, mas e o que está em nós? Como reconhecemos, em nós, o arbitrário, o injusto, o déspota, o corrupto, o vândalo, o eterno acusador de tudo e de todos?

Melhor ainda, o que estamos fazendo para transformar isso, modificar tais atitudes, produzir uma revolução nas nossas vidas, nas nossas crenças, nas nossas maneiras de pensar? Quero dizer que esse, e sem excluir outros enfrentamentos, mas esse também, e prioritariamente, é o campo onde devemos travar a maior batalha das nossas vidas. Produzir essa revolução, mais do que necessária. Uma revolução molecular, utilizando o conceito do filósofo marxista e ativista, Felix Guattari. Mudarmos por dentro, nossas células, moléculas. Mudarmos a nós mesmo. Cortarmos na própria carne. 

Então podemos pensar também na ideia de um devir revolucionário. Produzir nas nossas vidas cotidianas, pequenas mudanças, pequenas revoluções que favoreçam o outro, a sociedade, os seres vivos. Começar com honestas reflexões. Iluminar nossos egoísmos, nossa mesquinharia. Identificar nosso fascismo com o outro, o companheiro ou companheira. Colocar em pauta o que gostamos de chamar de altruísmo. Isso não existe! O devir revolucionário não é de esquerda, direita ou centro é produzir e inventar a vida. Produzir outras vidas nas nossas vidas. Assumir e transformar uma vida medíocre, mesquinha numa obra de arte. Compartilhar dessa vida/arte com todos. Experimentar a potência criadora e transformadora da vida e compartilhar com todos. Esse, no meu entender, é o desafio político/contemporâneo. De outra feita, correremos o risco de mudar tudo sem mudar nada.

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