Casa de Verdi tem destino incerto após disputa de herdeiros

23/11/2022 15:20
Por João Luiz Sampaio, especial para o Esatdão / Estadão

A pequena porta em um terreno protegido por um longo muro não chama atenção à primeira vista. Mas é como um portal para a música italiana do século 19. Isso porque, lá dentro, está a casa construída por Giuseppe Verdi, autor de óperas como La Traviata e Aida. Foi na Villa Sant’Agata, na província de Piacenza, no norte da Itália, que ele compôs algumas de suas principais obras, a alguns quilômetros de Busseto, cidade onde nasceu. Mas a casa agora se vê em meio a um imbróglio jurídico que envolve os herdeiros de Verdi. O museu foi fechado, sem previsão de reabertura. E a casa, assim como o acervo que mantém, pode ser alvo de uma intervenção do governo italiano.

Na sexta-feira passada, 18, o ministro da Cultura da Itália, Gennaro Sangiuliano, afirmou que o governo italiano tem intenção de comprar a propriedade. “A casa de Verdi não é apenas o lugar onde viveu o grande compositor, é um lugar de memória coletiva nacional, um pedaço da vida de cada um de nós. O Estado não pode permitir que ela se deteriore”, disse seu subsecretário, Vittorio Sgarbi, seguiu na mesma linha, afirmando que o Estado italiano já resolveu comprar a casa.

Mas, apesar das intenções oficiais, adquirir a Villa Sant’Agatta talvez não seja uma tarefa fácil. Antes, é preciso esperar que a justiça italiana decida sobre o destino do prédio após vinte anos de desentendimentos entre os herdeiros, assim como do acervo que ele guarda – documentos, objetos pessoais, instrumentos musicais, móveis, fotografias originais e uma série de outras lembranças de uma carreira de sucesso que fez de Verdi o maior compositor italiano do século 19, cuja fama segue viva nos palcos de ópera de todo o mundo.

Tragédias familiares

Verdi nasceu em 1813 em Busseto, na província de Parma. Aos 26 anos, já era um artista de renome, com sua primeira ópera, Oberto, encenada no Teatro Alla Scala de Milão. De uma família humilde, Giuseppe foi apoiado por mecenas de sua cidade, como Antonio Barezzi. Casou-se com a filha dele, Margherita, e teve dois filhos, Virginia Maria, nascida em 1836, e Icilio Romano, um ano depois. Mas logo viria a tragédia: entre agosto de 1838 e outubro de 1839, as duas crianças morreram. Meses depois, enquanto Verdi escrevia Un Giorno di Regno, seria a vez de Margherita.

A história digna de uma ópera não se encerra por aí. Anos depois, Verdi e a soprano Giuseppina Strepponi iniciaram uma relação que logo foi condenada, em Busseto e também em cidades tidas como mais cosmopolitas, como Milão: no passado, a cantora tivera filhos sem se casar. Verdi reagiu com energia às críticas, rompendo com a família de sua primeira mulher e com aqueles que se colocaram contra a união. E a Villa Sant’Agata, construída em 1848, foi durante meio século o lar e o refúgio dos amantes.

Giuseppe e Giuseppina não tiveram filhos. Mas trouxeram para viver em Sant’Agatta Maria Filomena, filha de um primo do compositor. Seus pais haviam morrido e a órfã de 9 anos passou a ser criada pelos dois, com quem viveu até o começo do século 20.

Como compositor mais encenado na Itália, Verdi juntou uma fortuna. E, pouco antes de morrer, deixou em testamento orientações sobre o destino do dinheiro. Em 1899, ele patrocinou a construção de um edifício no centro de Milão que serviria de casa de repouso a cantores aposentados, sem condições de se manter sozinhos.

A Casa Verdi seria mantida pelos direitos autorais das óperas do compositor, que determinou que o funcionamento só teria início após sua morte, para que nenhum artista se sentisse obrigado a agradecê-lo. Em 1960, quando suas óperas passaram a domínio público, os gastos foram incorporados pelo estado italiano e patrocinadores privados. Em 1994, história foi narrada no documentário Il Bacio di Tosca, de Daniel Schmidt; e um novo filme, Casa Verdi, foi realizado em 2008 por Anna Fransceschini.

A Villa Sant’Agata, por sua vez, foi deixada para Maria Filomena (Giuseppina morreu em 1897). Ela se casou com o contador de Verdi, Alberto Carrara, e, após intervenção do compositor, o governo italiano permitiu que ela incorporasse Verdi em seu sobrenome, dando origem à família Verdi Carrrara. A casa passou para sua posse com a condição de que seria mantida, assim como os jardins da propriedade, no estado em que se encontravam – uma obrigação que seria estendida a seus herdeiros.

Herdeiros

Maria Filomena e Alberto tiveram dois filhos, Angiolo e Giuseppina. Com a morte dos pais, a casa passou para Angiolo e, mais tarde, para seu filho mais velho, Alberto. Ele, por sua vez, teve quatro filhos: Maria Mercedes, Ludovica, Angiolo e Emanuela. Com a morte de Alberto, em 2001, Angiolo reivindicou para si a propriedade da casa.

Começou então uma batalha jurídica que, após duas décadas, determinou em outubro deste ano que a casa pertencia igualmente aos quatro herdeiros – e que, se nenhuma das partes tiver condições de comprar a parte das demais, ela deverá ser vendida. Segundo a imprensa italiana, a Villa tem altos custos de manutenção e necessita de reformas estruturais urgentes, que a família afirma não ter como custear.

Angiolo deixou Villa Sant’Agatta, onde vivia há 51 anos, no final de outubro, seguindo determinação da justiça, que ainda não decidiu oficialmente sobre como deverá acontecer a venda. O governo espera, segundo o ministro Gennaro Sangiuliano, ter preferência na hora da compra, o que ainda não é dado como garantia: outra possibilidade considerada pela justiça é a realização de um leilão aberto.

Liderados pelo tenor Francesco Meli – que esteve no Brasil no início de novembro para concertos no Teatro Municipal de São Paulo -, uma série de artistas italianos ligados à ópera criou o grupo Uniti per Verdi. Na última segunda-feira, 21, eles fizeram concerto em Milão para chamar atenção à situação da Villa Sant’Agatta.

O objetivo é pressionar o governo italiano para que efetue a compra da propriedade. “Espero que a Villa seja um museu e um museu para a história da Itália. O ministro da Cultura deveria preservar este lugar e é isso que eu espero. O governo disse que ninguém deve se preocupar com a preservação da casa. Espero que seja verdade porque com política sempre se fala muito. Então veremos”, afirmou em entrevista ao site OperaWire.

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