Caxias, Pedro II e Getúlio
O mês de agosto tem a tradição da turbulência nos anais pátrios. Se, por um lado, ele nos relembra sempre, no dia 24, do suicídio de Getúlio Vargas, ele também nos traz à memória a data de nascimento, no dia 25, do Duque de Caxias, figura ímpar de nossa História, a ponto de preservarmos a expressão “Fulano é Caxias”, como exemplo de pessoa correta e íntegra.
Comecemos pelo nosso Luis Alves de Lima e Silva, um brasileiro que, ainda hoje, nos transmite valores que estão na base da construção de um grande País. Oriundo de tradicional família militar, sentou praça muito cedo. Foi de barão a duque num período histórico muito curto em função dos servi-ços prestados na manutenção da integridade nacional e na guerra do Paraguai, cuja estratégia o elevou à condição de líder militar excepcional, aqui e lá fora.
Na guerra, quando assumiu o cargo de comandante-chefe das forças do Império, ele elaborou um planejamento cuidadoso, que lhe tomou quase um ano. Foi, na época, criticado na imprensa por essa suposta lerdeza. Na verdade, estava reorganizando o exército, que estava em más condições, utilizando inclusive balões para se assenhorar do terreno de operações antes de avançar. Quando o fez, foi a Dezembrada, em que, praticamente, em apenas um mês, liquidou a guerra.
Sua estratégia sempre me relembra de um comentário de Lincoln ao dizer que se tivesse 9 horas para derrubar uma árvore, passaria 6, afiando o machado. Ou seja, planejamento detalhado, ação rápida. Caxias ainda tinha méritos como figura humana. Jamais tripudiou sobre os vencidos. Após vencer os farroupilhas, ao ocupar a presidência da então província do Rio Grande do Sul, não encontrou oposição local tamanha era sua estatura militar e humana. Coroando tudo isso, jamais se deixou encantar pelo golpismo tão popular na América Latina.
Passemos a Pedro II. E aqui me permito, em parte pequena, o autoplágio de artigo que publiquei no Estadão, em 10/03/2015, “Pedro II e Getúlio”.
As Instruções do marquês de Itanhaém a seus preceptores explicam as raízes de sua obra após assumir o trono. Cinco pontos são os principais. O primeiro é que lhe ensinaram que o monarca é homem sem diferença natural de qualquer outro ser humano. O segundo é que a tirania e a violência da espada deveriam ser evitadas, mantendo o poder militar sob firme controle civil. O terceiro é a recomendação contra a decoreba, ensinando-lhe a pensar, valor que passou adiante ao criar o Colégio Pedro II. O quarto, pouco comentado, é que fosse instruído nos ofícios mecânicos para amar o trabalho como o fundamento de todas as virtudes. E o quinto, que lhe criassem o hábito de ler diariamente os jornais da Corte e das províncias. E ainda que ouvisse sempre as críticas, em especial a seus ministros, ritual semanal praticado como imperador, sábados à tardinha, na Quinta da Boa Vista, ao receber quem quer que lá fosse sem ter de marcar audiência prévia.
Tais preceitos foram para ele uma segunda natureza. Criaram, de fato, os pilares da confiança do povo em seus dirigentes, receita infalível para que as instituições funcionem a contento no curto, no médio e no longo prazos. Eis aqui a alma (perdida) que falta ao nosso arcabouço político-institucional ainda hoje, como reconhece FHC.
Getúlio Vargas, por sua vez, ouviu o canto da serpente positivista e se encantou com ele. Para Comte, assim como não havia liberdade em química e física, também não deveria haver em política, onde caberia implantar uma ditadura científica. Sem dúvida, música para os ouvidos de um futuro ditador. Tais acordes já haviam inebriado, em fins do século 19, a juventude militar, doutrinada pelo “mestre” Benjamin Constant. Pior: o positivismo fez escola entre nossos militares por décadas, alimentando a mentalidade de salvadores da pátria, que culminou com o golpe de 1964 e 21 anos de ditadura militar.
Boa parte da elite civil republicana também embarcou nessa canoa furada. O pilar central dessa visão autoritária é a desconfiança, marca de nascença de ditaduras e ditadores, civis e militares. Impossível construir uma grande nação assentada numa moldura institucional tão pobre e disfuncional. Não surpreende que o povo (tutelado) tenha ficado de fora.
A morte trágica de Getúlio Vargas evitou, por décadas, uma avaliação menos emotiva do que teria sido sua real obra. A emoção levou a melhor sobre a razão. A legislação trabalhista, a Petrobrás e a usina siderúrgica de Volta Redonda, dentre outras realizações, marcaram sua longa passagem pelo poder. Mas ditadores, em especial os que duram muito, deixam sempre marcas traumáticas numa sociedade. E não são apenas as prisões e torturas arbitrárias e mal explicadas.
A manipulação sistemática de tudo e todos é a marca registrada de ditadores. A incompetência também faz parte do processo com consequências desastrosas sobre o futuro das nações a eles submetidas. Os três demônios desse longo período varguista, denunciados por Gustavo Franco em seu livro “A moeda e a lei”, foram os seguintes: o inflacionismo (pior imposto sobre os pobres); o isolacionismo (a técnica do avestruz de enfiar a cabeça no buraco); e o seletivismo (crédito e taxas de juros camaradas primeiro para os amigos).
Mas a pior herança de Getúlio foi na esfera político-institucional. Criou dois partidos, o PTB e o PSD, com o propósito de controlar, respectivamente, os trabalhadores e a classe dirigente. Na área sindical, fez algo semelhante ao criar a contribuição compulsória tanto para sindicatos dos trabalhadores como para os patronais. E foi assim que nasceram os sindicatos sem sindicalizados. A referida contribuição permitia sua manipulação pelo governo, gerando ainda representatividade pífia. Herança que perdurou até inícios do século XXI.
No caso da legislação trabalhista, vista como proteção ao trabalhador, o tiro saiu pela culatra. O seletivismo (de alto custo) da proteção de uns jogou quase metade de força de trabalho na informalidade. Um estranho prodígio que nos atazana ainda hoje. O legado de Vargas acabou sendo uma trava àquilo que um País precisa para crescer de modo sustentado e democrático.