28/05/2021 08:00
Por Maitêus *

Brief Encounter, traduzido no Brasil como Desencanto, é um filme inglês de 1945 dirigido por David Lean. De premissa simples mas com temática ousada para a época, o filme tem como protagonista Laura Jesson, uma mulher casada, mãe de dois filhos, que vive tranquilamente sua vida, aparentemente sustentada por seu marido, Fred – o personagem mais simpático de todo filme -, um sujeito despreocupado com os rumos que sua companheira toma nas tardes e noites de quintas-feira.

A história não apresenta nada que se destaque de forma memorável. Laura vive um romance que a incomoda moralmente, já que tanto ela quanto o amante são casados e estão sempre preocupados com quem os observa e com o futuro dessa relação improvável. Laura não esconde seu amor por Fred mas encontra-se dividida por este novo romance que a dilacera. Do outro lado da história temos Alec Harvey, um médico substituto que uma vez por semana passa pela mesma estação de trem onde Laura costuma se acomodar para ler. É na cafeteria desta curiosa estação que eles se conhecem acidentalmente e que encenam grande parte das cenas juntos, especialmente as mais dramáticas.

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Há neste filme uma característica que parece muito comum no cinema deste período: um certo engrandecimento dos aspectos da vida moderna. O filme é na verdade um grande tour ao redor da vida citadina, uma propaganda da experiência de consumo. Ao estabelecer como pano de fundo este cenário consumista e ter como espaço central uma estação de trem, o filme glorifica, antes de tudo, os avanços tecnológicos da sociedade naquele momento. A facilidade e rapidez com que se sai de um restaurante e chega-se a um cinema pode nos parecer muito natural, mas neste momento a humanidade ainda engatinhava na sua experiência em torno do comodismo e observava tudo isso com brilho nos olhos. Além do mais, grande parte do mundo ainda não experimentava esses privilégios. Em sua maioria, a humanidade era composta por campesinos e os poucos lugares em que a vida industrial e urbana havia se desenvolvido estavam todos concentrados no norte do planeta. Um modo de vida está sendo exaltado de forma velada e junto com ele a sempre almejada experiência de libertação das amarras do superego, não é por acaso que o casal do filme vive um romance proibido e que este tenha sido um tema recorrente na história do cinema.

É nas telas que o cidadão médio pode projetar seus desejos reprimidos, e nela também ele descobre, sem ter que viver a experiência de fato, que o final pode ser trágico. De uma só vez o cinema consegue promover o modelo de vida urbano como ideal, de forma muito interessada, diga-se de passagem, já que é dependente desse modelo de organização da sociedade para se tornar viável, além de promover uma educação moral nos moldes da tradição cristã, reprimindo um modo de vida disruptivo, que resultaria potencialmente na desagregação do conceito de família nuclear. Ainda que nos apresente um personagem com ares de progressismo, (Fred, o marido de Laura) que não age de forma estúpida com sua esposa, permitindo que ela viva sua vida com liberdade, a mensagem condensada do filme segue a cartilha moral. Seu postulado diz que se entregar a uma paixão adúltera só pode levar ao sofrimento e possivelmente à morte.

É, no entanto, no estilo narrativo que o filme mais chama a atenção, e o faz de forma muito negativa. Mesmo não sendo um roteiro surpreendente, ele não é necessariamente ruim, mas o filme se torna desagradável na medida em que subestima a capacidade de leitura de imagens de seu espectador. Chega a ser desconfortante a forma como ocorre a ininterrupta narração da história através da voz da protagonista. Por diversos momentos, em que não há a menor necessidade de descrição da cena, já que a imagem fala por si só, a voz da protagonista ocupa o espaço para narrar, sem nada acrescentar, exatamente aquilo que estamos vendo. A situação fica muito pior para quem vai assistir ao filme com legendas. Muito provavelmente não se pensou nisso na época em que foi produzido, mas se torna angustiante assistir a uma cena em que sua atenção é roubada da imagem para o letreiro de legendas quando o que está escrito no rodapé é a exata descrição daquilo que pode-se ver diretamente. O filme erra de um jeito comprometedor ao optar por esse caminho.

O enorme flashback que toma conta de todo o filme dialoga com um clássico no expressionismo alemão, Gabinete do Dr Caligari, que tinha a vantagem de não poder cometer o mesmo erro que Brief Encounter por ter sido produzido na fase muda do cinema. No filme alemão conseguimos entrar na história que está sendo reprisada a ponto de esquecermos que trata-se do passado narrativo, já no filme inglês essa operação é impossível e não parece ter sido mesmo a intenção da obra. O grande problema neste caso é que a passividade de Fred tira toda a possível tensão que haveria com o desenrolar do flashback e por fim, o final do filme já está contado, é o presente, já sabemos o que ocorre, mas ainda assim o filme perde oportunidades óbvias de se valer dessa vantagem para criar qualquer tipo de tensionamento, como é o caso da cena inicial que se repete no fim da história, que por si só tem elementos marcantes, em que o funcionário da estação entra na cafeteria assobiando, e poderia ter sido usada como marcador de que estaríamos prestes a encerrar o ciclo reminiscente.

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* Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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