Cine Muda: Interlúdio, Alfred Hitchcock

26/03/2021 11:29
Por Maitêus*

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, espiões estadunidenses viajam ao Rio de Janeiro para investigar a atuação empresarial suspeita de ex-simpatizantes do nazismo exilados no Brasil. Em certo ponto do filme, durante um momento de desentendimento e desconfiança entre os alemães, decide-se pelo assassinato de um deles, que havia cometido um erro, então o responsável por executar a ação diz: “A estrada para Petrópolis tem muitas curvas. E é muito alta. Tem muitas curvas perigosas. Não terei dificuldade de convencer Emil a me dar uma carona.”
Esta cena faz parte do filme Interlúdio, um dos filmes mais importantes da carreira do maior cineasta de suspense da história do cinema, o inglês Alfred Hitchcock.

Arte: Thaysa Paulo

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Impressiona neste filme de Hitchcock a pesquisa elaborada que foi feita a respeito da geografia do Estado do Rio de Janeiro para produzi-lo, ainda mais se levarmos em conta que quase nada foi gravado no Brasil e que nenhum ator sequer chegou a pisar no país, por mais que 80% do filme se passe por aqui.

A pesquisa para o filme não se limitou ao relevo e a proximidade das cidades, mas também avançou em busca do histórico migratório da região, já que se tratando de personagens alemães é muito coerente que a cidade de Petrópolis aparecesse como um destino comum, tendo em vista seu processo de colonização mas também o lamentável fato da numerosa associação de petropolitanos com o nazismo durante a Segunda Guerra. Um outro fator que salta aos olhos é a aproximação desse pequeno acontecimento fictício dentro do filme como uma antecipação de eventos futuros reais, que faz pensar: a casa de um nazista em Petrópolis sendo usada como espaço de assassinato e desaparecimento de corpos é também parte do nosso histórico recente.

Nada que Hitchcock coloque em tela é por acaso. Uma garrafa de champanha esquecida ainda antes da metade do filme pode parecer um pequeno detalhe pra quem é espectador de primeira viagem, mas pra quem já assistiu dois ou três filmes do mestre do suspense já pode esperar que qualquer objeto cenográfico recebendo um close de mais de dois segundos terá algum protagonismo na história. Hitchcock costumava pensar em todos os elementos do seu filme, de forma bastante minuciosa já no processo de pré-produção, enquanto produzia o roteiro e definia como cada cena seria gravada e essa prática é perceptível ao assistirmos seus filmes, já que não parece haver nenhum plano sem propósito, por mais subjetivo que seja, ocupando a tela ao longo do filme.

Inclusive, uma anedota costuma ser contada quando o assunto é Hitchcock, dizem que o diretor chegava ao set de filmagens apenas quando tudo já estava perfeitamente organizado para dar início às filmagens e se retirava do set no instante seguinte ao encerramento das gravações, de modo que se fazia necessário que tudo nos estúdios estivesse exatamente do jeito que ele havia planejado, assim ele poderia simplesmente executar seus planos, sem ter que lidar com imprevistos.

Os filmes de Alfred Hitchcock são também paradoxais na medida em que os colocamos em perspectiva com o cinema clássico dos Estados Unidos. Em certa medida seus filmes estavam mesmo enquadrados no conceito de clássico, já que a estrutura das histórias contadas na tela são muito tradicionais, são feitas para serem muito bem compreendidas sem deixar qualquer tipo de aresta na cabeça de quem assiste, são filmes com começo, meio e fim. Por outro lado, todos os filmes de Hitchcock são tradicionalmente dele.

Num momento da história do cinema em que quem mandava nos filmes não era o diretor e sim as produtoras, Hitchcock conseguiu imprimir a sua marca em suas dezenas de filmes. Um outro elemento que coloca o cinema hitchcockiano em contraste com o cinema tradicional é a atenção que os filmes exigiam do espectador. Enquanto no cinema tradicional há uma constante e até mesmo enfadonha atitude de se reforçar o que está acontecendo na história, para impedir que o espectador se perca e se desinteresse pelo filme, o diretor inglês parece dar um ritmo diferente às suas histórias, de modo que elas possam ficar mais complexas do que ficariam se tivesse que gastar tempo de tela com repetições narrativas.

Por fazer um cinema completamente pensado, sendo um diretor muito cerebral, a graça para Hitchcock está na história a ser contada, no ponto de virada, na surpresa que o filme pode provocar, mas isso não o impede de utilizar a imagem de uma forma belíssima para dar seguimento aos seus enredos, ainda que a construção da imagem não seja exatamente a sua prioridade.

Em Interlúdio, o diretor se utiliza de artifícios fotográficos vindos do movimento expressionista francês no cinema, efeitos visuais que evocam mudanças de estados mentais, movimentos de câmera irregulares, até mesmo uma câmera de ponta cabeça é utilizada pelo diretor, mas ainda assim tudo isso é periférico em seu filme, a centralidade encontra-se toda na história a ser contada. Até mesmo o desenvolvimento do romance ao início do filme que é pouco convincente se torna um detalhe facilmente esquecível, já que ao longo do filme ele é melhor desenvolvido e acaba recebendo grande importância para o desfecho da narrativa.

Seus filmes são também muito centrados no entretenimento, mais do que na reflexão crítica, mesmo que Interlúdio traga para a discussão, de forma bastante prematura para a época em que foi lançado, o debate científico e político sobre a utilização preocupante do urânio. É importante lembrar que o roteiro já estava sendo escrito quando ocorreram as primeiras explosões nucleares criminosas e desnecessárias perpetradas pelos Estados Unidos sobre o Japão em 1945, de modo que a discussão sobre o desenvolvimento de armas de destruição em massa não era ainda uma informação amplamente difundida antes deste acontecimento.

Limito-me a não destrinchar por completo esta obra pois dar um spoiler de um filme de Hitchcock é quase um crime, já que seus filmes estão completamente sustentados na resolução final das histórias. Portanto, desta vez, este espaço servirá como uma indicação e um convite ao vasto cinema de Hitchcock, ao filme Interlúdio em especial, e a todos os outros do diretor. Tendo em vista que neste momento o cinema já estava bastante maduro, por mais que este seja um filme em preto e branco lançado a 73 anos atrás, podemos encontrar nele elementos dramáticos e narrativos que ainda são usados amplamente nos filmes mais recentes. Hitchcock de forma alguma está superado.

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*Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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