Cine Muda: Um domingo maravilhoso, Akira Kurosawa

12/03/2021 08:00
Por Maitêus *

“Com a minha mente vou a mil lugares, imaginação me dá forças pra voar”, com esses belíssimos versos de um poema japonês, que resumem perfeitamente este filme de Kurosawa, dou início a crítica dessa semana. Brincadeiras à parte, Um domingo maravilhoso, de 1947, é um filme sobre sonhos, sobre imaginação, sobre a fantasia em batalha franca contra a realidade.

Essa semana a coluna se mantém nas ilhas japonesas mas faz um percurso temporal, saindo do cinema “mudo” para o cinema “falado”. Esses são dois termos polêmicos que na história do cinema foram frequentemente problematizados, isso porque o cinema de fato nunca foi mudo, pois tanto no set de filmagens quanto na sala de exibição sempre houve som e nesta segunda sempre foram utilizadas estratégias de sonorização da experiência de se assistir a um filme. A grande mudança que ocorre no final da década de 1920, que normalmente nomeamos de surgimento do cinema falado, é na verdade o advento de tecnologias que permitiam a sincronização mecânica de sons e imagens, não mais exigindo dos projetores a contratação de pessoas que tocassem trilhas sonoras ao vivo ou mesmo explicadores para narrar o filme ao público. Esse passo que o cinema dá, abre novas possibilidades e amplia a experiência fílmica, concedendo aos cineastas e produtoras ferramentas narrativas complexas através do som. No que toca a esta coluna, essa mudança é importante no sentido de nos aproximarmos um pouco mais do cinema contemporâneo, tornando cada vez mais fácil para um número maior de leitores a experiência de acompanhar os filmes aqui analisados. Ainda estamos falando do cinema em preto e branco, é verdade, mas diferente do cinema sem som sincronizado, o cinema em preto e branco recorrentemente é instrumentalizado na atualidade como ferramenta narrativa, logo esta característica, acredito, é menos estranha para o espectador médio de cinema.

Em “Um domingo maravilhoso”, filme que se passa todo ao longo de um único dia, acompanhamos a história de um jovem casal de trabalhadores pobres que com seus 35 ienes tentam ter um encontro romântico na cidade de Tokyo. Este é um romance permeado de críticas sociais e existenciais, suas estrutura nos captura pela dramaticidade e nos conduz através de uma realidade social cruel, violenta e insensível aos dilemas dos sujeitos que habitam esta grande cidade, que como podemos supor, não tem nada de especial nesse quesito, comparada com outras ao redor do mundo.

Logo no início somos apresentados a um objeto que vai servir de símbolo marcador das transformações de Yuzo ao longo da história: a bituca de cigarro lançada ao chão por algum transeunte e pescada pelo rapaz, já indicando sua condição miserável. Esta condição, dentro de um filme com características do neorealismo, jamais seria transformada ao longo de um único dia, a mudança só pode ocorrer dentro da cabeça do sujeito. É o que acontece, influenciado por sua companheira, Masako, o rapaz atravessa um arco de transformação que o faz enxergar o mundo de um outro jeito. Sua companheira, desde o início, apesar de tão miserável quanto ele, demonstra uma postura esperançosa diante da vida, mesmo que nada ao redor dela indique a possibilidade de transformações significativas, ainda assim ela planeja um casamento, uma casa, um empreendimento, tudo isso ao lado de seu companheiro.

O futuro não é o único elemento a ser projetado neste filme, os desejos também são. Logo após saírem do zoológico e se abrigarem da chuva, o rapaz convida a mulher para seu quarto, ela por sua vez resiste ao convite, demonstrando certa insegurança em dar este passo na relação – apesar de gostar dele, a mulher tem medo. A cena que acompanhamos um pouco adiante, uma das mais extensas do filme, é uma aula de utilização do tempo no cinema como mecanismo de alteração de estados de espírito dos personagens. Vemos o casal no corredor de um prédio, prestes a entrar no quarto do rapaz, a mulher havia cedido ao pedido, quase por pena, e os dois estavam prestes a concretizar a vontade do jovem trabalhador. Mas como este filme não é um filme simplista, o que se passa a seguir é um jogo de idas e vindas, de lamentações, choros, situações de auto abandono e redenção que fazem os 21 minutos da cena parecerem curtos demais para tantos acontecimentos. A redenção adquirida pelos personagens nessa cena – o rapaz redimido das suas questões sociais e a mulher das suas inseguranças – parece os conduzir a uma nova realidade, onde tudo se resolveu e agora a vida é um belíssimo encontro num refinado café ambientado por gostosas conversas afáveis, mas só até chegar a conta e com ela o retorno ao real. O dinheiro que lhes restava do início do dia não era suficiente e agora pareciam impossibilitados de continuar seu encontro.

Ao longo de toda a história o casal se pôs numa posição de fuga da realidade em que viviam – afinal de contas o filme se passa em um dia de domingo, e é esse o intuito dos domingos de folga, aliviar as frustrações da rotina – e do momento em que se encontravam sem nenhum centavo no bolso em diante o casal deixa seu tour literal pela cidade de tóquio de lado e começa a passear por um mundo imaginário, encenando, com um sorriso no rosto e um brilho no olhar, situações improváveis em um futuro incerto. Essa cena toda ocorre em um cenário bastante simbólico para a situação em que se encontravam: um bairro destruído, provavelmente como consequência da guerra. Os dois andam de um lado a outro enquanto conversam, desviando e por vezes interagindo com os destroços, numa cena que resume bem a mensagem do filme, colocando a imaginação como veículo de ressignificação da realidade.

Ao fim do filme certa ambiguidade se instala. Se por um lado a expressão e a atitude do protagonista são de otimismo, por outro a realidade prática indica que nada se transformou de verdade. Ambiguidade aliás encontra-se no nome do filme, uma vez que o domingo do casal não foi tão maravilhoso assim, tendo se encerrado com o rapaz agredido, sem dinheiro e despedindo-se de sua companheira. É ambígua também a visão de mundo apresentada ao longo do filme, ainda que o otimismo prevaleça nos personagens, é a incerteza sobre o futuro que fica mais evidente para quem assiste. Por fim, o filme se instala como um pedaço de tempo, não se pretende um resumo da história dos personagens, apresenta-se para nós como uma Sinfonia Inacabada.

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*Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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