Clássico brasileiro inspirou desfile da Portela

14/fev 08:42
Por Sabrina Legramandi / Estadão

A Portela escolheu basear o enredo de seu desfile na segunda-feira, 12, em um clássico da literatura antirracista nacional. Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, inspirou a passagem da escola pela Marquês de Sapucaí, no Rio. Com 952 páginas, o livro apareceu em primeiro lugar entre os mais vendidos na Amazon nesta terça-feira, 13, logo após a segunda noite de desfiles das principais escolas de samba do Rio.

Apesar de ser um romance, o livro é baseado em fatos históricos. Ilustra a trajetória da ex-escrava Luísa Mahin, figura importante na Revolta dos Malês, na Bahia, tida como mãe do abolicionista Luiz Gama. Na obra, Luísa, também conhecida como Kehinde, volta ao Brasil, cega, para procurar o filho desaparecido.

A narrativa é centrada em Kehinde, mas são muitos os personagens que dão vida à história: 416, até o início do nono capítulo, muitos deles inspirados em pessoas reais.

“Quis contar principalmente a história das mulheres, que tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África”, comentou a autora em entrevista ao Estadão em 2007, pouco depois do lançamento do livro,

À época, Ana Maria Gonçalves afirmou que não escreveu a obra com a intenção de uma adaptação cinematográfica no futuro, mas como “um livro que gostaria de ter lido sobre todas aquelas histórias esquecidas e perdidas nos arquivos”. “Há histórias comoventes de mães que sacrificam os filhos para que não passem por aquilo que viveram”, disse.

Uma dessas histórias é a de uma escrava impedida de amamentar os filhos para dar leite ao bebê da patroa. Trancada em um quartinho após desobedecer à ordem, ela e as crianças passam a ser alimentadas com apenas uma lata de arroz por dia. A mulher, então, enlouquece e estrangula os dois bebês, tentando cortar o pescoço com a tampa da lata. “É uma história que li num jornal, como muitas que estão no livro”, lembrou a escritora.

Movimentos

No argumento para o enredo deste ano, a Portela descreveu que a vida de Luísa “poderia ser a história da mãe de qualquer um de nós, ou melhor dizendo, é a história das negras mães de todos nós”. “Precisamos não apenas nos espelhar na história, mas principalmente valorizar as descendentes desses movimentos de coragem por amor à continuidade”, argumentou a escola a respeito do tema. “Através de seu filho, Luiz Gama, sonhamos com uma carta em que o importante abolicionista responde à sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro.”

Ao Estadão, Iraneide Soares da Silva, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), avalia que Um Defeito de Cor é um livro que “ultrapassa a literatura”. “Não é somente a ficção que está ali, mas é a história do Brasil. A história das mulheres negras brasileiras”, diz.

Ela considera que a escola foi “muito feliz” com a escolha e em levar o tema do antirracismo para a Marquês de Sapucaí. “Quando eu assisti ao desfile, fiquei encantada, porque consegui ver a história que a gente tem tentado contar e recontar do Brasil”, comenta.

Para ela, Um Defeito de Cor no carnaval significa a possibilidade de fortalecer a revisão historiográfica do Brasil, especialmente em relação às mulheres negras. A importância de livros como o de Ana Maria Gonçalves – Iraneide também cita Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus – é de aproximar o público do que já é pesquisado acerca do antirracismo.

A pesquisadora pontua que não há como se imaginar o carnaval sem pensar na participação negra no Brasil. Ela frisa, porém, que em blocos e festas tradicionais, como em Salvador ou Olinda, não é possível visualizar, de modo geral, os negros usufruindo da data.

Tradição

“As escolas de samba tradicionais, sobretudo do Rio de Janeiro, são constituídas pela população negra, pelas comunidades, mas quem está dirigindo, muitas vezes, não somos nós”, afirma. Para Iraneide, o carnaval tem sofrido “apropriação”, mas, ao mesmo tempo, não há como fugir de temas da negritude.

“Essa tradição não tem como fugir da gente, da população negra”, comenta. “Mas, a gente precisa ter uma participação mais expressiva, sobretudo em grandes blocos do carnaval, que são privatizados. Neles, ainda estamos carregando carrinho e empurrando o carro.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Últimas