Com chances mínimas de condenação, democratas apostam em ligar Trump à violência

09/02/2021 16:18
Por Estadão

Pela primeira vez na história, um presidente dos Estados Unidos enfrenta, a partir desta terça-feira, 9, um segundo processo de impeachment relacionado ao seu mandato. Donald Trump, agora fora da Casa Branca, é acusado de incitar seus apoiadores a invadir o Capitólio, no dia 6 de janeiro, em um ataque que deixou cinco mortos e abalou o cenário político do país.

Tal como no primeiro julgamento, em fevereiro do ano passado, as chances de Trump ser condenado, algo inédito nos EUA, são pequenas: para ser considerado culpado, são necessários os votos de 67 senadores, ou seja, 17 republicanos teriam que votar contra o partido, e até agora apenas cinco se mostraram dispostos a tal.

Para mudar o cenário de uma derrota esperada, os democratas moldam sua estratégia para tornar o julgamento didático, mostrando como as palavras de Donald Trump questionando a lisura da eleição de novembro e incitando seus apoiadores a “irem para o Congresso”, em comício no dia 6 de janeiro, foram os estopins para a invasão posterior.

Como revelou ao The New York Times, o deputado Jamie Raskin, principal acusador no caso, foram criados vídeos associando discursos e atos de Donald Trump a episódios de violência.

O material, que foi comparado a séries de ação, inclui episódios como a conversa entre o ex-presidente e o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, onde pede às autoridades locais que “achem votos” para reverter a vitória de Joe Biden no estado.

Os acusadores reconhecem que o foco central será o comício que o então presidente fez no dia 6 de janeiro, atacando a confirmação da vitória de Biden que seria feita pelos congressistas horas depois. Para eles, ao apontar falsamente ilegalidades na votação e pedir que os senadores e deputados republicanos se recusassem a confirmar os votos na eleição presidencial, Trump deu seu apoio a um ataque sem precedentes na história recente dos EUA.

“Mesmo com esse julgamento, onde os próprios senadores são testemunhas, é muito importante contar toda a história”, declarou ao The New York Times o deputado democrata Adam Schiff, que integra a acusação. “Isso não diz respeito apenas a um dia, diz respeito à conduta de um presidente que usou seu cargo para interferir com a transferência pacífica de poder.”

Contudo, os acusadores ainda não fecharam questão sobre a participação de testemunhas. O próprio Trump foi chamado a depor, mas já recusou o convite, e o tema divide opiniões. Se por um lado a convocação de nomes como o de Brad Raffensperger poderia fortalecer a narrativa contra Trump no plenário e junto ao público em geral, trazer testemunhas esticaria o julgamento em alguns dias ou mesmo semanas, atrapalhando os planos da Casa Branca para pôr em votação o quanto antes propostas prioritárias do governo Biden.

“Se eles querem chamar testemunhas, isso vai prolongar, com certeza. Acho que você está falando em empurrar o julgamento para a próxima semana ou a outra semana, uma vez que os dois lados terão essa opção disponível”, afirmou o vice-líder da minoria republicana no Senado, John Thune, ao site Politico.

‘Teatro político’

Apesar de poderem chamar testemunhas, os advogados que defendem Trump não sinalizam essa linha de ação, preferindo questionar a legalidade do processo e rejeitar as acusações.

Em novo documento entregue ao Senado com as linhas principais da defesa, Bruce Castor e David Schoen acusam os democratas de usar o impeachment para criar um “teatro político” contra uma pessoa que não ocupa mais o cargo – Trump e aliados apontam uma ilegalidade no julgamento, afirmando que o Senado pode julgar pessoas que estejam em cargos federais, e não aqueles que já deixaram esses postos.

“Ao invés de curar a nação, ou ao menos processar os malfeitores que atacaram o Capitólio, a presidente da Câmara e seus aliados tentaram usar o caos daquele momento para ganho político próprio”, diz o briefing entregue pelos advogados nesta segunda-feira.

Schoen e Castor reforçam ainda a ideia de que o uso da palavra “luta” em seu discurso no dia 6 de janeiro foi “metafórico”, e que ele pedia que as pessoas usassem suas vozes para que fossem ouvidas. Eles declaram também que o ex-presidente estava protegido pela Primeira Emenda da Constituição, que dispõe sobre a liberdade de expressão, ao questionar a lisura da eleição presidencial do ano passado, e por isso não deveria ser processado.

“Caracterizar essas declarações como ‘incitação à insurreição’ é ignorar, de forma ampla, o resto do discurso de Trump naquele dia, incluindo seu pedido para que os apoiadores ‘pacificamente fizessem suas vozes serem ouvidas'”, diz o documento.

Trump pode ser indiciado após o julgamento no Senado

Embora seja improvável que Donald Trump seja considerado culpado de encorajar um motim, os problemas jurídicos do ex-presidente americano não irão desaparecer após seu julgamento no Senado: ele poderá em breve ser indiciado na justiça criminal e também enfrenta vários processos civis.

O ex-magnata do mercado imobiliário de Nova York, instalado em sua luxuosa residência na Flórida, há muito é alvo de inúmeros processos civis e tem um exército de advogados prontos para defendê-lo ou atacar seus adversários.

Como um simples cidadão, ele corre o risco de pelo menos uma acusação criminal, liderada pelo promotor democrata de Manhattan, Cyrus Vance, que luta há meses para obter seus extratos fiscais e bancários.

A investigação, que inicialmente se concentrou em pagamentos feitos a duas supostas amantes de Trump antes da eleição presidencial de 2016, agora está examinando possíveis fraudes fiscais, bancárias e de seguros.

A Suprema Corte ordenou em julho que Trump entregasse os documentos exigidos ao promotor, mas seus advogados questionaram a amplitude do pedido na mais alta corte. O Supremo Tribunal ainda não se pronunciou sobre isso.

Trump chamou a investigação de “a pior caça às bruxas da história americana”.

Fraude fiscal ou bancária

O dossiê, conduzido a portas fechadas perante um grande júri, parece avançar apesar de tudo.

De acordo com a imprensa americana, os investigadores de Vance questionaram recentemente funcionários de sua seguradora, Aon, e do Deutsche Bank, financiador de Trump e sua holding, a Trump Organization.

Eles também interrogaram novamente o ex-advogado de Trump, Michael Cohen, na prisão depois dele ter admitido que comprou o silêncio de duas supostas amantes do ex-presidente.

Cohen disse em uma audiência no Congresso que Trump e sua empresa inflaram ou reduziram artificialmente o valor de seus ativos para obter empréstimos bancários ou reduzir seus impostos.

A procuradora-geral do Estado de Nova York, a democrata Letitia James, também está investigando essas alegações. Ela já confrontou com sucesso os advogados da Organização Trump para poder interrogar um filho de Trump, Eric, e obter documentos sobre algumas propriedades da família.

Sua investigação é civil, mas “se descobrirmos fatos criminais, isso mudará sua natureza”, disse James recentemente.

Se as alegações forem confirmadas, o ex-presidente pode enfrentar uma pena de prisão. E ao contrário dos crimes federais, as violações das leis estaduais não podem ser perdoadas pelo presidente americano, mesmo que Joe Biden quisesse fazê-lo em nome da reconciliação.

Alguns críticos de Trump comemoram com antecedência, como os militantes do Rise and Resist (Levante-se e Resista), que se manifestaram no início de janeiro em Nova York para exigir sua prisão.

“Ninguém tem pressa”, disse Daniel Richman, ex-promotor e professor de direito na Universidade de Columbia. “A última coisa que queremos é que o processo (judicial) seja utilizado, ou percebido como sendo utilizado, como um instrumento político”, frisou.

“Existem duas escolas”, disse Roberta Kaplan, uma advogada encarregada de três processos civis contra o ex-presidente. “Eu sou da escola que pensa que não devemos proibir que se faça justiça por medo de jogar óleo no fogo: se não agirmos para dizer claramente que os pilares sobre os quais o país se assenta valem para todos, presidentes ou não, acho que corremos perigos muito maiores. “

Palco a la Al Capone’

Para Gloria Browne-Marshall, professora de direito da City University of New York (CUNY), Trump no banco dos réus seria “um resultado lógico”, “um cenário à la Al Capone”, o lendário gangster dos anos 1920 finalmente condenado em 1931 por evasão fiscal.

Embora ache que a acusação provavelmente ocorrerá antes do final do atual mandato do promotor Cyrus Vance em novembro, Browne-Marshall não aposta que haverá um julgamento ou uma condenação.

Com milhões de apoiadores potencialmente dispostos a financiar sua defesa, Trump poderia revidar com seus próprios processos e fazer os dossiês se arrastarem “por anos”, disse.

Isso forçaria os promotores – autoridades eleitas que dependem do dinheiro do contribuinte – a mobilizar recursos consideráveis para a batalha, acrescentou.

Bennett Gershman, ex-promotor e professor da Pace University, aposta que Vance indiciará Trump.

“Se ele estivesse diante de um júri novamente, seria um verdadeiro circo, seria incrível”, disse ele. “Nunca vimos tal coisa.” (Com agências internacionais)

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