Como Churchill combateu a barbárie com palavras

06/02/2021 09:30
Por André Cáceres / Estadão

Quando Winston Churchill assumiu o cargo de primeiro-ministro britânico, em maio de 1940, a situação da 2ª Guerra Mundial era delicada: a Alemanha havia invadido a Noruega, a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, e se preparava para ocupar a França. O bombardeio aéreo que devastou Roterdã em 14 de maio daquele ano levou à rendição dos Países Baixos e soava como um prelúdio do que a força aérea alemã pretendia fazer na Inglaterra. Nessa “atmosfera de medo real” – conforme escreveu em seu diário o secretário Harold Nicolson, do Ministério da Informação -, Churchill ascendeu ao poder e teve de usar a principal arma à sua disposição para se defender do arsenal de Hitler: a palavra.

É o que descreve em detalhes o livro O Esplêndido e o Vil, do jornalista norte-americano Erik Larson. O autor se debruçou sobre diários, cartas, discursos e papéis avulsos para narrar o período de um ano e meio entre a ascensão de Churchill e a entrada dos Estados Unidos na guerra, em dezembro de 1941, ponto de virada do conflito.

Boa parte da narrativa compreende a blitz aérea da Alemanha contra o Reino Unido, que levou a mais de 44 mil mortes de civis. Enquanto isso, Hitler pressionava Churchill a assinar um acordo de paz, o que parecia a muitos a única alternativa restante sem o apoio dos EUA.

Considerar óbvia a irredutibilidade moral de Churchill, que se negava a barganhar com o nazismo, não passa de anacronismo. Larson mostra não apenas que ele era criticado por não negociar, mas que praticamente ninguém concebia a ideia de que Hitler poderia ser vencido. Essa era a principal razão pela qual os EUA se limitavam a observar a distância. Em maio de 1940, 93% dos americanos se opunham à entrada do país na guerra e o presidente Franklin Roosevelt, que queria se reeleger, prometeu não se envolver.

A convicção da iminente vitória alemã era tamanha que o secretário Nicolson chegou a fazer um pacto com sua mulher, a escritora Vita Sackville-West, de que cometeriam suicídio para evitar serem capturados pelos alemães. O próprio Churchill carregava uma cápsula de cianeto na tampa de sua caneta-tinteiro. Nesse contexto, seus discursos eram a única arma para motivar os ingleses, desmoralizar os alemães e convencer os americanos a colaborar com o que Churchill chamava de “a Boa Causa”.

Do memorável “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor” ao inquietante “Se a história antiga desta nossa ilha deve acabar enfim, que só acabe quando cada um de nós estiver no chão, afogando-nos no sangue deles”, Larson transcreve trechos inteiros de discursos de Churchill. Para cada ataque alemão, havia uma bomba equivalente do arsenal de palavras do primeiro-ministro. À época, ele já era reconhecido como um brilhante orador, e não é por acaso que, em 1953, foi galardoado com o prêmio Nobel de Literatura “por sua maestria na descrição histórica e biográfica, assim como sua brilhante oratória na defesa dos valores humanos”.

O Esplêndido e o Vil evidencia como esses pronunciamentos foram capazes de alterar aos poucos a opinião pública e, com isso, os rumos da História. Se o atentado japonês na base naval de Pearl Harbor, entre as ondas do Havaí, foi a gota d’água que restava para a entrada dos EUA na guerra, o resto do copo havia sido preenchido pelas explosivas palavras transmitidas por Churchill pelas ondas do rádio. Larson respondeu às seguintes perguntas do Estadão por e-mail.

Em que medida os discursos de Churchill influenciaram os eventos da guerra?

Para mim, o livro é uma história pessoal sobre como Churchill, sua família e seus conselheiros mais próximos conseguiram resistir à primeira e mais relevante blitz aérea alemã. Eu quis usar essa experiência para capturar a história maior de como a Inglaterra como um todo sobreviveu a isso. E aí os discursos de Churchill foram vitais. Ele começava fornecendo avaliações sóbrias dos eventos, mas então seguia com causas reais para o otimismo e, invariavelmente, encerrava com virtuosos floreios que elevavam o moral das pessoas e faziam todos se sentirem no mesmo barco. Como ele próprio disse, ele não deu coragem à Inglaterra; ele ajudou as pessoas a encontrar sua própria coragem.

Guerras são lutadas com armas, mas é possível dizer que Churchill usou suas habilidades oratórias para contra-atacar bombas com palavras?

Isso se deu porque seus pronunciamentos eram tão poderosos e tão belamente escritos, ou melhor, ditados. O que é realmente miraculoso sobre Churchill era sua habilidade de compor discursos intrincados e detalhados na correria, ditando, tipicamente enquanto andava ao redor de uma sala com um charuto na boca. Ajudava o fato de ele ser um escritor prolífico e um ávido leitor, e ter uma grande noção da história inglesa e mundial. Isso era importante, pois lhe dava uma perspectiva ampla sobre o que estava se passando. Ele entendia que o Império Britânico havia existido por um período de tempo muito grande e duraria muito tempo ainda. Seu truque era persuadir o público – uma tarefa na qual ele foi muito bem-sucedido.

A História não admite “se”, mas você consegue imaginar como a guerra poderia ter sido sem essas habilidades singulares de Churchill?

Eu tento evitar especular sobre a História! Dito isso, eu acho provável que outro alguém teria desempenhado esse papel caso Churchill não tivesse existido. Mas eu não posso imaginar alguém fazendo isso com tanta cor, humor, brio – e álcool!

Que lições sobre liderança Churchill oferece aos governantes lidando com a crise da pandemia de covid-19?

Eu creio que o livro seja útil ao mostrar como um verdadeiro líder pode ajudar a população a resistir ao trauma prolongado. Uma grande parte disso foi a habilidade de Churchill de expressar compaixão e empatia, de modo que as pessoas sentiam que ele compartilhava de seus medos e sofrimentos. Isso é vital. Ele também falava ao público com franqueza, porque ele entendia que as pessoas sabiam quão séria era a situação. Dizer o contrário provocaria uma dissonância entre essa fantasia e a realidade objetiva que teria erodido o moral das pessoas. Em contraste, nós tivemos Trump, que nunca ofereceu compaixão ou empatia, preferindo negar a severidade e até a existência da pandemia, e de alguma forma conseguindo tornar até o simples ato de usar uma máscara em um gesto político divisor – com resultados infelizes, porém previsíveis.

Como foi o processo de pesquisa e por que você escolheu enfatizar e citar trechos de diários, cartas, telegramas e recados pessoais para recriar a atmosfera daqueles dias?

Para escrever o tipo de história que eu gosto de contar, preciso de todas essas coisas. Elas oferecem os vislumbres mais precisos e vívidos sobre como a vida realmente era vivida. E também servem como ferramenta narrativa para levar a história adiante. Alguns bons telegramas direto ao ponto ajudam a acelerar o ritmo. Sobre o porquê de citar certos documentos: sigo meus instintos. Se um diário parece particularmente vívido e cheio de insights, vou citá-lo. Por exemplo, o diário de Mary Churchill. Para mim, o diário faz todo o livro, ao oferecer uma ideia tão rica de como os Churchills realmente resistiram àquele período. Ela foi uma mulher tão inteligente e articulada, seu diário não apenas nos dá vislumbres das grandes questões da guerra e da política, mas também sobre a vida de uma garota de 17 anos durante essa época. Ela foi perspicaz ao sentir o peso da guerra e teve compaixão pelos que mais sofreram, mas também queria se divertir! E ela o fez bastante. O que nos lembra que, mesmo nos piores tempos, ainda é possível ter experiências alegres.

Sem diários e correspondência impressa, será mais difícil documentar os nossos dias desse jeito intimista que você retratou aquela época?

É difícil dizer. Certamente as pessoas não escrevem mais o tipo de cartas que costumavam e esse era um recurso poderoso para compreender o passado. Mas nós temos tuítes, postagens no Facebook e em blogs, podcasts em abundância e uma pilha inacabável de fotografias de tudo – especialmente de gatos. Na verdade, sinto que tuítes poderiam ser particularmente preciosos para os futuros historiadores. De certa forma, são os telegramas de hoje. É interessante que os Arquivos Nacionais dos EUA agora armazenem grandes quantidades de tuítes, o que é particularmente importante para este momento. Ninguém que tentar, no futuro, escrever sobre a era Trump será capaz de fazê-lo sem antes se debruçar sobre milhares e milhares de seus tuítes de sanidade questionável. Suspeito que os futuros historiadores vão lê-los e rir sobre o quão ridículos e patéticos esses tuítes eram.

O ESPLÊNDIDO E O VIL

Autor: Erik Larson

Trad.: Rosiane C. de Freitas e Rogério Galindo

Ed.: Intrínseca

(324 páginas, R$ 59,90, R$ 39,90 o e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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