Como o pescador artesanal perdeu o Mar quando estrada, turista e barcos chegaram a Ubatuba

09/mar 07:30
Por Edmundo Leite / Estadão

Publicar reportagens mostrando problemas ambientais de várias naturezas era uma das características do Jornal da Tarde. Em 21 de janeiro de 1974, por exemplo, o jornal mostrou aos seus leitores como os pescadores e caiçaras da cidade de Ubatuba, no litoral Norte de São Paulo, estavam perdendo “seu mar”, suas terras, seus ofícios e sua cultura a partir da chegada da estrada asfaltada Rio-Santos e de modernos barcos pesqueiros.

Com base na tese de doutorado “Pesca e Marginalização do Litoral de São Paulo”, do sociólogo Antonio Carlos S. Diegues, a repórter Célia Romano contou como estava a situação da pesca artesanal na região e como os pescadores e caiçaras donos de terras passaram a vender suas propriedades a preços irrisórios para serem “reduzidos a caseiros de terrenos de que antes eram proprietários.” Leia a íntegra.

Jornal da Tarde – 21 de janeiro de 1974

O PESCADOR VAI PERDENDO SEU MAR

Os modernos barcos pesqueiros afastam os cardumes e os pescadores do litoral Norte vão mudando de profissão.

Célia Romano, especial para o JT.

Barcos pesqueiros modernos levam os cardumes; a tainha desaparece: com a nova estrada vêm as grandes empresas e as grandes fortunas, que competem pela posse das terras e das fontes de nutrição. Depois vem o turista que oferece uma quantia absurda pelo direito a uma casa de fim-de-semana. O pescador artesanal de Ubatuba, reduzido à miséria pela riqueza que chega, só tem bons motivos para deixar de ser pescador. Vende sua terra, e com ela seus hábitos, seu passado‚ tua profissão, tudo o que tem e sabe. E, menos armado que nunca, vai recomeçar a vida.

DEFINIÇÃO

“O pescador artesanal é dono de toscas embarcações, geralmente a remo, que, na captura e desembarque da espécie, trabalha sozinho ou utilizando mão-de-obra familiar ou não assalariada, explorando ambiente ecológicos limitados através de técnicas reduzidas, de rendimento relativo.” (Antonio Carlos S. Diegues. Pesca e Marginalização do Litoral de São Paulo, tese de doutoramento)

Nessa definição, o pescador surge caracterizado justamento por aquilo que não tem: não tem meios de trabalhos, não tem um bom campo de operações, não tem um rendimento seguro. Também não tem sócios.

O estudo feito por esse sociólogo na região de Ubatuba, onde se concentra o maior número de pescadores do Estado – ainda verificou outras grandezas negativas: 50 por cento dos pescadores recebem menos que o salário mínimo; 31,2 por cento ganham menos de cem cruzeiros por mês: muitos não possuem aparelhos de pesca: e muitos são obrigados a outra atividade para completar o sustento.

Isso já foi melhor. Logo após a decadência do café, uns trinta anos atrás, a pesca para o comércio, coincidindo com o surto industrial de São Paulo, atravessou uma época de grande fartura. Alguns mutirões chegaram a apresar 8 mil tainhas. As mulheres ficavam na praia, limpando e salgando o peixe: os homens se repartiam nas funções de vigia.

Dividido o quinhão, o dono do cerco oferecia comida e cachaça para todos. Não era só uma festa; era um modo de organização social. A medida que a tainha desapareceu, essa pequena sociedade coesa se fracionou em trabalhadores isolados.

Quando chegaram os primeiros barcos aparelhados para a pesca em pontos distantes da costa – baleeiras, traineiras, as grandes embarcações de empresas como a Confrio, sediada em São Sebastião – alguns caiçaras abandonaram a pesca (outros abandonaram a lavoura) para trabalhar neles.

Outros, ainda, juntaram seus recursos e compraram pequenos barcos a motor, reduzindo, embora pouco, a desigualdade da competição. A maioria não pôde; em 1971 havia 250 canoas a remo, contra 75 motorizadas e 14 barcos. Nem todos podem alcançar as regiões para onde os cardumes recuaram.

TURISMOS

O pescador, assim, se sente cada vez mais um intruso num mar que pretende conhecer como ninguém. Mas em terra também não está em casa. Nas praias onde o turismo penetrou, é comum verem-se antigos pescadores reduzidos a caseiros de terrenos de que antes eram proprietários.

Vender foi uma destruidora forma de salvação. A oferta do turista, altíssima para os padrões locais, é geralmente ridícula para quem conhece o ramo imobiliário. Alguns caiçaras possuem fortunas em terras, e não sabem. Naturalmente o comprador não os informa a respeito. E então o experimentado pescador se torna um péssimo pedreiro.

Eles não têm grandes esperanças. Sabem que o turismo, apesar dos seus males, pode aumentar o consumo, e que o peixe está cada vez mais caro. Mas poderão manter-se na profissão até que ela volte, um dia, a compensar?

Há quem fale em formar uma cooperativa. Mas o pescador, hoje, é demasiado individualista, e receia. Além disso, diz João Coutinho, presidente da Colônia dos Pescadores, não há apoio oficial.

E já houve uma experiência frustrada, em 1967: quando a cooperativa tentou um empréstimo no Banco Nacional de Cooperativismo, para comprar um caminhão, o banco pediu cadastro da diretoria.

Mesmo os empréstimos da Sudepe, diz Coutinho, são inacessíveis, e as prestações demasiado puxadas, Na impossibilidade de montar uma cooperativa, eles esperam, este ano, pelo menos fazer uma feira livre permanente e vender direto – sem os atravessadores que levam 40% de comissão no transporte para São Paulo.

Instalada em Ubatumirim, a Asel (Ação Social Estrela do Litoral), dirigida pelos padres franciscanos, procura ajudar os pescadores a se associarem. Construiu um estaleiro, inaugurado em julho, e vende barcos abaixo do custo, facilitando ao máximo o pagamento.

O primeiro, o Reizinho, já foi lançado ao mar. Tem também um Centro Educacional que dá cursos de carpintaria, construção, eletricidade, e procura educar os caiçaras para que enfrentem a época. “Para transformar uma mentalidade”, diz frei Pio, seu diretor, precisaríamos de uma geração. Neste ponto, chegamos tarde. Mas antes não havia nada.”

Mesmo a Asel não vê solução sem espírito de cooperativismo, e isto a geração mais velha não tem. E por bons motivos, parece. Roque Nunes, 60 anos, família de 13 pessoas, já desistiu. A Rio-Santos passa pela porta da sua casa, cobriu boa parte da sua plantação (banana, café, abacate, laranja, cana e mandioca) e o empurrou para um canto da propriedade, junto ao morro, com uma complicada disputa de terras e títulos, que ele custa a compreender.

Assegura que tem os documentos, mas confessa que, se for mandado embora dali, sem a indenização (que nem sabe de quanto seria), não tem para onde ir nem meios de se sustentar. O mais que ganhou nos últimos meses, diz, foi 50 cruzeiros. Voltou a pescar? Impossível:

– A estrada entupiu meu ponto de saída das duas praias mais próximas.

Manoel é um privilegiado. Ganha 300 cruzeiros por mês. Mas queixa-se do aparato técnico dos concorrentes: dois barcos puxam uma única rede, que vem varrendo o mar: “Se a gente não sai da frente eles vêm em cima. Quando passam por perto levam todo o peixe”.

Se tivesse condições, mudaria de profissão, mas não quer ser empregado nem sócio.

– A gente vai com os outros e eles querem a metade. Dizem que brasileiro não tem combinação, não é?

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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