Como se vive o cristianismo hoje

04/06/2023 08:00
Por Leonardo Boff

Os grandes analistas da história nos confirmaram que há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Isso significa que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí o porquê de se falar em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social. Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.

Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.

Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos, liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), no qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, colocar em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.

O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, procurou-se assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria e, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação, que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.
O processo de secularização trouxe à luz três formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.

Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo em seus valores humanísticos de respeito aos direitos humanos, de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa. Não negam o valor da Igreja, mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.

Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional, mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão social em relação à fraternidade e ecológica, no que diz respeito a guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba-paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.

Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, de forma secularizada. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como agnósticas ou como ateias ou, simplesmente, sem uma definição específica. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.

Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, defendendo as mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”. (Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46), que podemos denominar como o evangelho dos ateus humanísticos, é dito que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”. (v.45).

Portanto, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor do outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.

São João em suas epístolas enfatiza: “Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”. (1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”. (3 Jo 1,11).

Aqui se realiza o que dizia o grande teólogo alemão, que participou de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer: “viver como se Deus não existisse”. (etsi Deus non daretur).

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