Contos de Júlia Lopes de Almeida

21/02/2020 14:41

Quando estudamos a ficção brasileira escrita por mulheres na virada do século XIX para o século XX, vemos que quase todas essas obras se destinam a agradar leitores e leitoras, sem manifestar maior preocupação pela análise psicológica e/ou social, e igualmente destituídas de uma linguagem criativa, questionadora ou que pudesse ferir o status vigente da mulher de sociedade. Entretanto, verificamos hoje que uma dessas escritoras, Júlia Lopes de Almeida (1862- 1934), pouco ou nada se enquadra em tais condições. Em seus romances e sobretudo nos contos de Ânsia eterna (1903), ao contrário do que se poderia esperar, a autora mostra bastante ousadia e intenção transgressora. Não só aborda temas tabus, como o estupro e o suicídio de mulheres desprezadas, como enfrenta com violência a realidade circundante a ponto de exibir sem recato as mazelas cotidianas. Amesquinhada pelos modernistas que criticavam sua pouca penetração psicológica, a autora surpreende o leitor. Lançou-se em 2013 a 3ª edição do livro de contos Ânsia eterna. Principalmente pelos 28 contos do volume, Júlia Lopes de Almeida, pertencente ao Realismo, com algumas pitadas do Romantismo e certo pendor para o Naturalismo por influência de Maupassant, há muito necessitava de uma revisão do seu papel na literatura brasileira. O conto que abre o volume e dá título à obra, cuida de um personagem que deseja escrever um livro e está sempre riscando o que escreveu por julgá-lo incompleto e afinal inatingível – é o desespero de muito escritor, como sabemos. 

Dissemos acima que a autora não evita assuntos que eram tabus à época. Em Ânsia eterna, entre outros títulos, ela nos brinda com um belo exemplo: em ‘O caso de Rute’ (p. 61), a moça Rute confessa ao noivo que foi estuprada pelo padrasto. O noivo não aceita a situação, despreza a noiva por não ser mais uma mulher pura, e Rute se suicida. Nos demais contos, avulta o amor materno: quase sempre apaixonado, ele ora é desprezado pelo filho (‘A caolha’, p. 115, obra-prima de grande crueldade), ora aparece no conflito das gerações, como ‘A morte da velha’ (p. 155), ora ainda surge como força vital em ‘Pela pátria’ (p. 191). A par deles, são narrados casos que sugerem algo do realismo fantástico, com visíveis conotações metafísicas: ‘A rosa branca’ (p. 53) e ‘A alma das flores’ (p. 143). No primeiro, note-se o extremado amor de uma menina pela avó; no outro, um personagem enxerga a alma das flores que contempla, e essas almas são belas mulheres. De todos os contos, convém ressaltar ‘No muro’ (p. 231), pelo tom quase proustiano das reminiscências de Maria Teresa, quando recorda as histórias contadas pela sua babá, a velha escrava Teodora. De todo modo é importante e urgente uma leitura completa da ficção de Júlia Lopes de Almeida. 

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